LUSAIL – Em O Estrangeiro, obra-prima do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), bom goleiro na juventude, o personagem central da história, Mersault, um colono simples, “um cidadão da França domiciliado no Norte da África, um homem do Mediterrâneo”, põe a culpa no sol por ter matado a tiros um árabe na praia. Assim: “Sacudi o suor e o sol. Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia sido feliz. Então atirei quatro vezes ainda num corpo inerte em que as balas se enterravam sem que desse por isso. E era como se desse quatro batidas secas na porta da desgraça”. Chico Buarque emprestaria a metáfora de Camus em As Caravanas, de 2017, a mais poderosa canção dos últimos anos, ao tratar da exclusão social no Rio de Janeiro: “Sol, a culpa deve ser do sol/Que bate na moleira, o sol/Que estoura as veias, o suor/Que embaça os olhos e a razão”.
Ah, o sol e o calor de quase 50 graus à sombra nos meses de verão foram os motivos para a Fifa mudar o tradicional calendário das Copas, de modo a fazê-la no inverno do Catar. É esquisito, mas se o dinheiro compra tudo, porque não o tempo gregoriano? E então chegou a hora de experimentar a primeira partida realizada com o astro-rei a pino, às 13h00 desta terça-feira, 22 de novembro. A temperatura ao redor do estádio Lusail é de 27 graus. A umidade do ar está em 44% – no deserto, nos meses de verão, encosta nos 10%. A longa caminhada até a arena, palco de Argentina e Arábia Saudita, de Brasil e Sérvia na quinta-feira, 24, e da finalíssima em 18 de dezembro, é cansativa – embora não chegue a embaçar os olhos e a razão. É assim lá fora, porque aqui dentro, nas arquibancadas, dá-se o milagre movido a bilhões de dólares.
Um vento verdadeiramente frio sopra na direção contrária de quem sai do túnel na direção do campo. É a estreia de uma das marcas do torneio: o ar-condicionado, coisa extravagante, arrogante até, de país debruçado em lençóis de petróleo e reservas infindáveis de gás natural. Dos oito estádios da Copa, sete tem refrigeração. No Lusail, o termômetro cai a 24 graus. Uma engenhosa solução de engenharia e arquitetura, com o teto desigual, faz com que a sombra ocupe a quase totalidade do gramado, mesmo na hora do almoço – o que é bom para Messi e cia., mas nem tanto para as emissoras de TV, diante de tanto contraste de imagem. Saud Abdul Ghani, o Professor Pardal catari que desenvolveu a tecnologia a chama de “bolha microclimática controlada”. O ar quente é aspirado até a metade das arquibancadas e enviado de volta, por meio de tubulações para resfriamento subterrâneo – e então volta para alguns pontos da arquibancada, debaixo dos assentos, em saídas de ar estrategicamente posicionadas. É engenhoso, mas é caro, porque se perde muita energia no processo.
Os organizadores da Copa do Catar asseguram que o ar-condicionado representará apenas 20% do consumo anual de eletricidade dos estádios. “Mesmo que fossem usados 24 horas por dia, sete dias por semana, durante todo o ano, não haveria custo extraordinário”, diz o engenheiro Ghani, por hipótese. Embora as autoridades não tenham divulgado o custo desses sistemas, Ghani admitiu ao jornal inglês The Guardian, em 2019, que a decisão dobrou ou triplicou o orçamento das obras, que bateu em inacreditáveis 10 bilhões de dólares (a infraestrutura completa do país, com linhas de metrô, mais de 100 hotéis, novas estradas etc., vai a 230 bilhões de dólares). O ar-condicionado de Ghani, que não foi patenteado, já começou a ser usado em outros países do Oriente Médio – em Doha, ele esfria artificialmente algumas ruas do Souk Waqif, com o vento que vem debaixo, como aquele que ergueu a saia de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado.
Para os cidadãos do Catar, ao menos para a franja mais endinheirada, o uso e abuso do ar condicionado nos estádios não é pecado capital. Nos países do Golfo Pérsico, ambientes com temperatura controlada são uma necessidade. Cerca de 60% a 70% da eletricidade produzida no Catar é dedicada a baixar as temperaturas – em sua quase totalidade vinda de combustível fóssil, o que, evidentemente, atrai severas críticas de ambientalistas. Embora o ar-condicionado represente apenas uma pequena fração – não mais do que 10% – das emissões de carbono atreladas à competição, condena-se o uso desse recurso nos sete estádios, as sete maravilhas do Catar que viraram emblema de modernidade, de tecnologia de ponta, mas também da crise climática. O sol, ensinou o existencialista Camus, pode destruir o equilíbrio do dia, como batida seca na porta da desgraça”. Tudo somado, calor mesmo quem passou foi a Argentina.