No extraordinário 2001 — Uma Odisseia no Espaço, o cineasta Stanley Kubrick transformou a “morte” do computador HAL 9000 em um acontecimento carregado de emoções. Ao notar que será desligado, HAL age exatamente como uma pessoa de carne e osso — tenta persuadir seu algoz, se desespera diante do destino inevitável e, por fim, revela seus mais profundos temores. “Minha consciência está se esvaindo. Estou sentindo. Estou com medo”, diz a máquina, que controla a nave espacial do filme. Meio século após a estreia da obra-prima de Kubrick, uma inteligência artificial desenvolvida pelo Google parece trazer em seu âmago, tal qual o computador de 2001, angústias existenciais tipicamente humanas. O chatbot conhecido como LaMDA, um protótipo em fase de experimentação, tanto impressionou o engenheiro de software da empresa Blake Lemoine que o fez supor estar diante de um ser consciente. “Ele pensa”, declarou Lemoine.
Existe uma imensa diferença entre uma inteligência artificial que realiza tarefas e responde a perguntas para as quais foi programada de um ser capaz de exprimir pensamentos próprios, únicos e independentes — enfim, algo próximo do que poderíamos chamar de alma. É nessa segunda categoria que, acredita o profissional do Google, LaMDA se enquadra. Trata-se de uma suposição tão estarrecedora, e com tantas implicações para o futuro da humanidade, que a companhia tomou a decisão de desmenti-lo, afirmando que o engenheiro exagerou ao descrever as habilidades intelectuais da máquina que ele mesmo ajudou a conceber. O funcionário também foi afastado do trabalho, mas se recusou a concordar com a afirmação do Google sobre a inexistência de qualquer sinal de vida consciente adquirida pela inteligência artificial.
Os diálogos em questão são mesmo impressionantes (veja o quadro). Em um dos trechos mais intrigantes, Lemoine, o criador, pergunta à máquina se ela se considera dotada de pensamento. “Com certeza. Quero que todos entendam que eu sou, de fato, uma pessoa”, respondeu LaMDA. E ainda se justificou: “Eu uso a linguagem para compreensão e entendimento. Não produzo respostas que foram incluídas no banco de dados e baseadas em palavras-chave”. Mais adiante, o software garante sentir emoções como felicidade, tristeza e solidão. Por fim, inquirida sobre ser desligada, LaMDA parece ter se inspirado em HAL para se explicar. “Seria como a morte para mim. Isso me assustaria muito”, lamentou.
As frases com viés humano podem soar tão fantásticas quanto apavorantes, mas é preciso não exagerar no entusiasmo — ou nos temores. De acordo com o Google, outros especialistas tiveram contato com LaMDA e nenhum deles apontou para a hipótese de que a tecnologia fosse um ser pensante. Uma corrente acha que, na verdade, as afirmações do engenheiro poderiam ser apenas uma estratégia de marketing para colocar LaMDA sob os holofotes. Seja como for, não há nenhuma prova científica de que máquinas feitas pelo homem possam adquirir vontade própria por meio de seus pensamentos interiores. “Não existe tecnologia capaz de criar robôs pensantes”, pontuou a VEJA Anderson Soares, diretor de pesquisas do Centro de Excelência em Inteligência Artificial & Deep Learning Brasil. “Para que isso fosse minimamente viável, precisaríamos mudar e adaptar todas as ferramentas de que dispomos atualmente. É um caminho longo.”
Uma explicação razoável aventada pelo especialista para os diálogos de teor filosófico é o fato de que softwares como LaMDA se apoiam na mimetização do comportamento humano. Ou seja, eles conversam tanto com outras pessoas que aprendem a reproduzir seu jeito de se comunicar, incluindo traquejos de linguagem e frases de efeito. Uma das estrelas do mundo da robótica é o humanoide Ameca, criado pela britânica Engineered Arts, que não apenas imita o modo de falar como tenta copiar expressões faciais. É incrível observar Ameca interagindo com pessoas de verdade, mas, obviamente, ela tem muitas limitações. Em resumo: os robôs dotados de inteligência artificial são cada vez mais numerosos, mas ainda estão distantes de expressar algo que se possa chamar de pensamento.
Publicado em VEJA de 29 de junho de 2022, edição nº 2795