O Brasil é o país que mais utiliza defensivos agrícolas — o nome técnico e pomposo dos pesticidas. São mais de 700 000 toneladas dispersos por lavouras anualmente, volume que supera o de Estados Unidos e China juntos, o segundo e o terceiro colocados no ranking. O risco pelo contato direto com esses produtos durante o cultivo é notório e repleto de estudos. Agora, os especialistas começam a se preocupar cada vez mais com a exposição contínua e cumulativa entre os consumidores, dentro de casa. O mais recente Atlas dos Agrotóxicos, publicado pela Fundação Heinrich Böll, da Alemanha, aponta aumento no índice de intoxicação no Brasil de 97%, entre 2010 e 2019. Já a mais atual avaliação da Anvisa constatou vestígios de compostos proibidos ou acima do nível permitido por lei em um em cada quatro alimentos de origem vegetal. O alarme soa em um contexto de recente aprovação pelo Legislativo de um conjunto de medidas que flexibilizam a liberação de agrotóxicos — o “Pacote do Veneno”.
Engana-se quem pensa haver traços de agentes químicos apenas nos produtos frescos de hortifrúti. O Atlas dos Agrotóxicos escancara a presença oculta em alimentos ultraprocessados, que passam por processo industrial, como hambúrgueres, empanados e embutidos. À conclusão semelhante chegou o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) ao analisar 24 amostras de nuggets, salsicha e companhia: delas, 14 apresentavam restos de pesticidas. Trata-se de uma preocupação extra para quem se abastece regularmente de alimentos supertratados, que também não são equilibrados do ponto de vista nutricional. “Estamos diante de um enorme problema de saúde pública”, afirma Márcia Sarpa, coordenadora de Prevenção e Vigilância do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Defensivos como o glifosato, o mais popular no país, já foram acusados pela Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer, ligada à OMS, de serem provavelmente cancerígenos. Mas, tanto aqui como na Europa, por exemplo, o parecer de outras entidades permite que eles continuem em uso. Enquanto fabricantes alegam segurança para o consumidor, órgãos como Idec e ONU denunciam regularmente os possíveis perigos, a ser mitigados com legislação e monitoramento mais rígidos. O cenário, por vezes, é nebuloso. A própria Anvisa, que já havia dado sinal verde ao glifosato, reavaliou o componente em 2020, quando decidiu manter o aval, mas com restrições na aplicação. A sombra persiste, porém. Um trabalho internacional com participação da Fundação Getulio Vargas (FGV) associou o uso do agrotóxico no cultivo de soja a uma alta de 5% na mortalidade infantil em localidades do Sul e Centro-Oeste do país. Outra pesquisa ligou a exposição a aumento de 41% no risco de um tipo de linfoma, câncer no sistema linfático. A inquietação de estudiosos também tem a ver com a quantidade despejada nas lavouras. A concentração máxima permitida de glifosato no Brasil é 5 000 vezes maior do que a autorizada na União Europeia. “Nossos limites são expressivamente mais elevados que no restante do mundo, mas como isso é possível se o corpo humano é o mesmo em todo lugar?”, indaga o advogado Leonardo Pillon, do Idec.
Na prática, a fim de se blindar, instituições como a Anvisa recomendam a lavagem criteriosa de vegetais frescos, o que pode ter efeito limitado devido à impregnação das substâncias na casca e polpa. “A principal medida para se proteger é mudar o perfil de compra, priorizando alimentos produzidos por sistemas orgânicos e agroecológicos”, diz Pillon. Quanto aos processados, a orientação por ora é checar a lista de ingredientes e privilegiar o que é feito de matéria-prima orgânica. Contudo, entidades ligadas à saúde e defesa do consumidor batalham pela implementação de um rol de medidas em escala maior e com impacto no setor produtivo, caso da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos, já discutida pelo Congresso. Nesse clima de insegurança, a prudência manda manter olhar atento no mercado… e na despensa.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880