Há um ano, em um momento em que a Covid-19 parecia dar uma trégua e todos ansiavam por um fim de ano de celebrações, o mundo foi surpreendido pelo aparecimento de uma variante que rapidamente elevou os casos da doença. Era a ômicron, cepa do SARS-CoV-2, coronavírus causador da doença, que surgiu com enorme poder de transmissibilidade, porém menos letal do que as anteriores — alfa, beta, gama e delta.
Dominante desde então, é ela que está por trás da nova escalada de casos verificada neste momento. Há crescimento em todos os lugares. O Japão não enfrentava altas desde setembro. Neste mês o índice oscila entre 30 000 e 78 000 diagnósticos diários. A Itália contabilizou, apenas na sexta-feira 11, mais de 181 000 registros. No Brasil, o último levantamento da Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica mostrou que, entre o início de outubro e o de novembro, o índice de testes positivos passou de 3,7% para 23%. Os hospitais sentem os impactos da nova onda. Na Rede D’Or São Luiz e no Hospital Sírio-Libanês, o total de pacientes internados com a doença quase dobrou em duas semanas. O Hospital Israelita Albert Einstein, de São Paulo, assinalou um aumento na taxa de positividade nos testes realizados nesse período de 2% para 34%.
O que está ocorrendo não é uma surpresa, mas é a primeira vez que o mundo experimenta o que é conviver com um vírus que veio para ficar. O receio é compreensível, mas convém não alimentar o pânico. Desde meados do ano passado, sabia-se que dificilmente apareceria uma cepa que levasse a outra interrupção das atividades cotidianas, mas, de quando em quando, surgiriam variantes ou sublinhagens mais ou menos barulhentas, capazes de provocar surtos como o atual. A entrada neste momento se dá justamente pela disseminação de sublinhagens da ômicron. E isso não acontece à toa. Identificada na África do Sul e em Botsuana em novembro de 2021, ela foi a última a receber a designação de variante de preocupação pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A análise genética à qual foi submetida apontou uma cepa completamente diferente das demais, mas o temor de que gerasse outra catástrofe sanitária se dissipou à medida que sua baixa letalidade ficou evidente.
Contudo, a ômicron continuou circulando ativamente — hoje corresponde a praticamente 100% dos casos confirmados submetidos a sequenciamento genômico no mundo —, o que permitiu a ocorrência de diversas mutações. Uma das sublinhagens, em expansão há um mês, foi apelidada dramaticamente de Cérbero, referência ao mitológico cão de três cabeças que pertencia ao deus grego Hades e que tinha por função guardar a porta do mundo dos mortos. Na denominação científica, é chamada de BQ.1.
Felizmente, nenhuma das variantes da ômicron entrou no radar de alerta da OMS. No entanto, é natural que a explosão de casos assuste e traga à memória a angústia dos primeiros anos da pandemia. Mas há questões que precisam ficar claras. Primeiro, aquele momento dificilmente voltará. Entretanto, dado como certo que a Covid-19 está aí, a realidade exige mudanças de comportamento, quando necessárias, e o acompanhamento da doença por parte das autoridades de saúde, a exemplo do que se faz — ou do que se deveria fazer — com outras enfermidades.
No que se refere à Covid-19, isso quer dizer que, em surtos, recomenda-se o uso de máscaras, como bem fizeram centenas de estudantes que se submeteram à prova do Enem no domingo 13, dando um belo exemplo e em contraponto à torcida que, no mesmo dia, lotou o Autódromo de Interlagos para o Grande Prêmio Brasil de Fórmula 1, a maioria sem proteção. É compulsório, com crescimento ou não de casos, que todos mantenham a vacinação em dia. Os imunizantes, não é demais lembrar, são os grandes responsáveis pela redução expressiva de mortes causadas pela Covid-19: 90% entre fevereiro e novembro deste ano, segundo a OMS. Quando o esquema vacinal não está completo, o risco aumenta. Na cidade do Rio de Janeiro, 92% das pessoas agora internadas com a doença na rede pública não tomaram todas as doses. No estado de São Paulo, a primeira morte pela BQ.1 foi de uma mulher de 72 anos com comorbidades, que tinha tomado apenas três das quatro doses prescritas para casos como o dela. “O impacto em hospitalização e óbitos depende da cobertura vacinal e de quando a pessoa tomou a última dose”, diz Julio Croda, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical.
O problema é que o cenário brasileiro é desanimador. Por mais que 80% da população tenha tomado as duas primeiras doses, as adicionais engatinham. De acordo com o Ministério da Saúde, mais de 69 milhões de pessoas ainda não buscaram a primeira dose de reforço e mais de 32 milhões não receberam a segunda dose adicional. Outro gargalo é a imunização das crianças com mais de 6 meses e menos de 5 anos. As primeiras doses ainda estão chegando ao Brasil, e o ministério determinou que, por enquanto, fossem destinadas apenas ao público pediátrico com comorbidades.
Na esfera de ações de cunho científico, duas iniciativas são imprescindíveis. Uma é o estabelecimento de uma rede de monitoramento do coronavírus para que nenhuma alteração genética escape aos sistemas de detecção. Esse trabalho vem sendo feito desde 2020 e os resultados abastecem a plataforma Gisaid, criada em 2008 para o compartilhamento de dados sobre o influenza, o vírus da gripe. Com a pandemia, ela se tornou base de informações sobre onde surgiam e circulavam as variantes e sublinhagens do coronavírus. Até agora, cerca de 14 milhões de sequências de genoma do SARS-CoV-2 foram submetidas à ferramenta. Nas Américas, o trabalho é realizado pela Rede Regional de Vigilância Genômica, com a participação da Fundação Oswaldo Cruz e do Instituto de Saúde Pública do Chile.
Informações desse gênero são ouro puro para o desenvolvimento de vacinas. As empresas Pfizer e Moderna criaram vacinas que incluem proteção contra a ômicron, já disponíveis nos Estados Unidos e em alguns países europeus. Estão em estudo, ainda, imunizantes que defenderiam de vários vírus, as chamadas vacinas “pan-Covid”. “Elas ofereceriam defesa contra a Covid-19, o influenza e o vírus sincicial respiratório, tão perigoso para os bebês”, afirma Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. O calendário vacinal contra o coronavírus não está definido, mas certamente virá acompanhado de boas novidades. E surtos finalmente deixarão de ser sustos.
Colaborou Diego Alejandro
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816