Startup desenha moléculas para tratamento de autismo e até câncer
Transtornos mentais, ansiedade e dependência química são condições que podem ser beneficiadas por plataforma para descoberta de novas drogas
Uma startup paulista desenvolveu uma plataforma computacional inovadora para a descoberta de novas drogas, que está sendo aplicada com sucesso na triagem de moléculas para o tratamento de diversas doenças, incluindo transtornos mentais, autismo, ansiedade, dependência química e até mesmo certos tipos de câncer.
A Naiad Drug Development – empresa incubada na ITUFABC, incubadora da Universidade Federal do ABC (UFABC), em Santo André – é uma startup de bioinformática especializada na criação de novas moléculas bioativas que têm como alvo os chamados “receptores acoplados a proteínas G” (GPCRs, na sigla em inglês), uma família de receptores associados a uma ampla gama de doenças.
A empresa teve apoio do Programa Fapesp Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) para realizar a triagem de moléculas atuantes especificamente sobre o receptor de ocitocina, com foco em aplicações terapêuticas.
A ocitocina, cujo receptor é um GPCR, é um hormônio produzido no cérebro que tem papel importante na indução do parto e na amamentação. Por seu papel na modulação do humor, da interação social e da ansiedade, a ocitocina ficou conhecida popularmente como “o hormônio do amor”.
Unindo a inteligência artificial ao chamado “desenho de fármacos com base na estrutura”, a plataforma computacional desenvolvida pela Naiad é capaz de realizar a triagem de bilhões de moléculas, identificando aquelas que têm alto potencial de sucesso para uso terapêutico e selecionando com precisão algumas centenas para prosseguir nos testes celulares laboratoriais.
O “desenho de fármacos com base na estrutura” consiste em desenhar e otimizar estruturas químicas com o objetivo de identificar um composto adequado para testes clínicos – isto é, para selecionar candidatos a novos fármacos.
De acordo com Pedro Henrique Camargo Penna, um dos fundadores da Naiad, na Fase 1 do Projeto PIPE a empresa focou inicialmente na busca de moléculas que atuam de forma agonística no receptor de ocitocina – ou seja, aquelas que excitam esses receptores e podem ser úteis para doenças mentais ou neurológicas.
“Tivemos sucesso nessa fase inicial e conseguimos encontrar diversas moléculas que se ligam ao receptor de ocitocina e que ainda não são utilizadas como fármacos. As moléculas mais promissoras foram selecionadas após uma rodada de testes in vitro e mostraram grande potencial para servir de base para o desenvolvimento de drogas com aplicação em diversos problemas e condições neurológicas, em especial dependência química e alguns sintomas do autismo”, diz Penna.
Além disso, a empreitada resultou também em diversas moléculas com ação potencialmente relevante no combate a alguns tipos de câncer de alta incidência na população. “Os antagonistas do receptor de ocitocina já são estudados para o tratamento de ejaculação precoce e para o aumento da taxa de sucesso de fertilização in vitro, por exemplo”, afirma o pesquisador. “Mas novos estudos têm mostrado que o bloqueio do receptor de ocitocina pode atuar também de forma considerável na redução de alguns tumores específicos. Por isso, expandimos o projeto e começamos a fazer a triagem de moléculas atuantes sobre o receptor de ocitocina com diferentes mecanismos de ação, focando na geração de valor em diferentes cenários”, explica.
Depois do sucesso nos testes in vitro realizados na primeira etapa, a Fase 2 do Projeto PIPE, recentemente aprovado, terá como foco a descoberta de moléculas que não apenas têm atividade sobre o receptor de ocitocina, mas que também apresentem características ótimas em relação à forma como são metabolizadas pelo corpo humano.
“Na Fase 2, nosso foco é a busca de moléculas com ótima atividade farmacodinâmica e farmacocinética”, detalha Penna.
Segundo ele, será empregado o desenho de fármacos com base na estrutura. Por meio dessa técnica, a proteína é modelada de forma tridimensional, átomo por átomo, a partir de um modelo da molécula feito em computadores. A partir daí, há diferentes técnicas para realizar a triagem dentro da região de interesse do receptor.
“Houve um avanço tecnológico muito grande nessa área. Se antes já era possível triar milhões de moléculas nos computadores, agora isso foi potencializado por placas de vídeo muito potentes e softwares muito avançados. Com esse salto tecnológico, hoje conseguimos fazer a triagem de bilhões de moléculas para cada alvo – entre eles, o receptor de ocitocina. A inteligência artificial produziu um salto ainda maior”, avalia.
Capacidade computacional
Em termos práticos, toda a capacidade computacional é utilizada para avaliar se a molécula se encaixa ou não nos receptores. São aplicadas então funções que calculam um “score”, definindo o quanto o encaixe é favorável. “Com isso aumentamos enormemente a taxa de sucesso na seleção de moléculas com potencial para testes in vitro”, diz Penna.
“Trabalhamos com estações de trabalho de alta performance. São computadores superpotentes, capazes de processar um enorme volume de dados. Os softwares também são um ponto relevante, no qual investimos bastante. Embora boa parte da nossa plataforma tenha sido desenvolvida internamente, também integramos softwares que já estão plenamente validados”, afirma o pesquisador.
De acordo com Penna, além das moléculas que atuam nos receptores de ocitocina, a Naiad também tem desenvolvido novas moléculas que atuam em outros GPCRs. Esses receptores localizados nas membranas das células estão envolvidos em aspectos tão fundamentais da biologia que aproximadamente 30% dos medicamentos disponíveis no mercado agem nesse grupo de proteínas.
“Os GPCRs têm papel-chave em processos como resposta hormonal, comunicação entre neurônios e modulam processos biológicos de todo tipo, dos mais basais até os de alto nível, desde modulações metabólicas em nível celular à regulação do humor e atenção. Por conta disso, para praticamente toda doença há algum GPCR envolvido”, explica Penna.
O modelo de negócios da Naiad tem foco na geração de valor para que as moléculas selecionadas sejam licenciadas para as grandes empresas farmacêuticas.
“Não estamos focados, neste momento, em levar o desenvolvimento das moléculas até os testes clínicos. As grandes empresas têm mais espaço para esse estágio do desenvolvimento. Por outro lado, temos grande experiência na parte computacional e na triagem de novas drogas. Por isso, nosso propósito é levar o desenvolvimento até o final da parte pré-clínica e, a partir daí, buscar licenciamento”, diz Penna.
Equipe especializada
Para isso, a Naiad conta com uma equipe de consultores de alto nível que atuam junto à empresa. Penna, que é o diretor-geral, é formado em ciência e tecnologia na UFABC e está finalizando seu doutorado direto na área de biossistemas. A diretora técnica, Valderes de Conto, é médica veterinária formada na Universidade Federal de Viçosa, com doutorado em biologia, na área de genética, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutorado na UFABC.
Além de Penna e Valderes, os outros dois fundadores da startup são Antônio Kimuz Braz, professor de genética molecular e genômica na UFABC, e Maurício Coutinho Neto, também professor da UFABC na área de química computacional. Ambos são sócios-cotistas da empresa. O biólogo Cláudio Miguel da Costa Neto, que atua como consultor da startup, é professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Também atua como consultor o químico Gerhard Gross, especialista no desenvolvimento de fármacos com ampla experiência internacional.
Penna explica que a empresa foi inaugurada em 2018, depois de receber recursos de um investimento-anjo. “Foi um grupo de investidores, pessoas físicas, alguns ligados ao mercado financeiro e todos entusiastas da tecnologia e interessados em inteligência artificial”, diz. Um dos investidores-anjo, Ricardo di Lazzaro Filho, também se tornou membro do conselho da empresa.
“O Ricardo foi um dos nossos mentores em todo o processo de formação e está conosco na empresa. Os investidores-anjo decidiram dar mais aportes à empresa posteriormente e também nos ajudaram na implementação dos protocolos que temos em funcionamento hoje. Em setembro de 2021, recebemos um investimento institucional da empresa de venture capital Green Rock”, conta Penna.
Negociações
Atualmente, a Naiad está estruturando sua próxima rodada de captação de investimento privado, que deve ser fechada até o início de 2023. A empresa integrará a delegação brasileira que participará em junho da BIO International Convention, em San Diego, Estados Unidos, a convite da Associação Brasileira de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi) e da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), onde discutirá seu pipeline de projetos em desenvolvimento e estará aberta para discussões com investidores e parceiros de negócios.
“Nossa metodologia está se mostrando muito eficiente em relação à detecção de moléculas de alto potencial farmacológico. Nossos números indicam isso e o mercado tem ficado atento a esses resultados. Estamos confiantes e empolgados com a possibilidade de contribuir significativamente para o desenvolvimento de novos medicamentos”, afirma Penna.