Sempre acreditei na proteção dada pelas vacinas. Quando surgiram opções contra a Covid-19, tomei as minhas três doses direitinho. Mas estava preocupada com a volta para a escola dos meus filhos, Cauã, de 11 anos, e Lilian, de 9, sem que tivessem sido vacinados. Foi quando soubemos que teria vacinação das crianças também. Estávamos muito felizes por isso. Meu filho postou a notícia do início da imunização e eu o parabenizei. Ele queria ser vacinado. Fomos no dia 25 de janeiro a um posto de saúde de Taubaté (interior de São Paulo), onde moramos. Chegamos bem cedo porque Cauã queria ser o primeiro a ser imunizado. Não deu. Já tinha uma pessoa. Expliquei a ele que não tinha problema algum nisso e que ele seria vacinado. Ficamos uma hora na fila esperando o postinho abrir. Logo que entramos, vi que tinha uma secretária e duas enfermeiras. Avisei a elas que eu era surda e pedi, por favor, que baixassem a máscara para facilitar a comunicação. Faltava acessibilidade e a máscara dificulta demais na hora de se comunicar. Eu sei fazer leitura labial e meus filhos me ajudam na interpretação. Eu e meu marido somos deficientes auditivos.
Demorou um pouco e a enfermeira-chefe, que estava longe, baixou a máscara para falar comigo. Consegui fazer o cadastro, eram informações simples e deu tudo certo. Cauã ia ser vacinado primeiro e não tinha pensado em filmar. A irmã achou que seria bom porque queria mostrar à avó. A enfermeira não queria que filmasse. Avisou que era só para tirar foto. Sorte que eu não aceitei. Na hora, meu filho falou em libras que ia tomar a vacina e fez o sinal de eu te amo para a comunidade surda. A enfermeira me mostrou a ampola, tirou o líquido, tudo parecia correr bem. Estávamos muito ansiosos. Mas ela picou o braço dele e não aplicou a vacina. No mesmo momento disse que ela não tinha injetado o conteúdo do frasco. Ela saiu correndo e jogou o líquido fora. Começou uma confusão. A profissional dizia que tinha aplicado a vacina, mas eu sabia que não. E tinha o vídeo para provar. Pouco antes, havia enviado a gravação para a advogada da minha família porque fiquei com medo de que me mandassem apagá-lo. Fiquei muito nervosa. Brigava com elas, mas o problema é que não me entendiam. Quando falo, as pessoas pensam até que sou de outro país por causa do jeito como pronuncio as palavras. Mas continuei defendendo meu filho como podia. Apesar de toda a dificuldade naqueles minutos, não sairia de lá sem que Cauã tivesse sido vacinado. Disse a elas que posso ser uma mãe surda, mas não sou boba. Ser surda não me impede de defender meus filhos.
Chamei minha mãe para ajudar porque não acreditavam em mim. Por fim, a enfermeira admitiu que havia errado na hora da aplicação por ter ficado nervosa. Por causa da filmagem? Parece que eu a estava assustando simplesmente por ser surda. Foi uma enorme falta de empatia. Depois de tudo, meu menino foi finalmente vacinado e minha filha, também. Postei o vídeo para que os pais tenham atenção na hora de acompanhar a imunização de seus filhos. Muita gente não sabe que o deficiente auditivo mantém preservada a sua parte cognitiva. Eu apresento a questão da deficiência, mas sou mais do que isso. Tenho autonomia para tocar a minha vida como qualquer um. Não me limito ao quadrado da minha orelha. Como presidente da Associação de Surdos de Taubaté, luto para que todos se desenvolvam e ganhem maturidade, inclusive na hora do voto, para eleger pessoas corretas. Na nossa cidade, por exemplo, precisamos de uma escola bilíngue que alfabetize em libras. Trabalho para que as outras pessoas entendam o que é ser deficiente auditivo. É uma luta diária pela inclusão.
Paola Dino em depoimento a Paula Felix (com interpretação em libras de Simone Vecchio)
Publicado em VEJA de 2 de março de 2022, edição nº 2778