Uma nova estratégia para a prevenção da aids será disponibilizada até o fim deste ano no Brasil para pessoas que vivem com risco altíssimo de contrair o vírus HIV. Conhecido pelo nome comercial Truvada, uma combinação dos antirretrovirais tenofovir e emtricitabitina, o medicamento da farmacêutica americana Gilead será oferecido inicialmente a 7 000 pessoas pelo Sistema Único de Saúde. É destinado àqueles com maior vulnerabilidade de se infectar e que relatam dificuldades de se proteger em todas as relações sexuais. Fazem parte do grupo os homens que fazem sexo com homens, pessoas trans, casais sorodiscordantes (quando um tem o vírus e outro não) e profissionais do sexo. Embora a orientação inquestionável e mais eficaz para a prevenção do HIV seja o uso do preservativo, a realidade na prática é um pouco diferente. Pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde demonstrou que metade dos entrevistados relatou não ter recorrido ao produto de látex na última relação com parceiro casual. Diz o infectologista da USP, Ricardo Vasconcelos: “É uma mudança de paradigma. Está na hora de atualizar o discurso de que o preservativo é a única estratégia para a prevenção do HIV. É, sem dúvida, a melhor e tem de ser encorajada sempre. Mas há alternativa de proteção para quem falha em utilizá-lo”.
Popularmente conhecida como Prep (sigla em inglês de profilaxia pré-exposição), a estratégia consiste na ingestão diária de um comprimido por pessoas que não têm o vírus. Para receber o medicamento do governo, o interessado deverá ser submetido a uma avaliação para verificar qual seu grau de exposição ao vírus HIV. Uma vez dentro do programa, será orientado a adotar todas as medidas preventivas, como o uso de preservativo, além de fazer acompanhamento médico periódico e testes de HIV. O Truvada também pode ser adquirido nas farmácias particulares que vendem medicamentos especiais, mediante receita médica. Custa 290 reais por mês.
Calcula-se que atualmente 827 000 pessoas vivem com aids no Brasil. Segundo os últimos dados divulgados pelo Ministério da Saúde, houve um aumento principalmente entre os jovens do sexo masculino. Entre aqueles com 20 aos 24 anos, por exemplo, a taxa de detecção subiu de 16,2 casos para cada 100 000 habitantes, em 2005, para 33,1 casos em 2015. A oferta do tratamento é uma tentativa de frear esse avanço.
Eficácia
O primeiro estudo com o Truvada teve início há uma década. A pesquisa recrutou 2 500 pessoas classificadas com alto risco de infecção. Metade delas recebeu os comprimidos azuis com o princípio ativo, enquanto a outra parte tomou placebo. De acordo com os resultados, os indivíduos que utilizaram o Truvada tiveram uma taxa 44% menor de infecção pelo HIV. Nos participantes que seguiram as recomendações médicas à risca e mantiveram a adesão ao tratamento, a redução da infecção foi ainda maior, de 92%. Até agora, foram realizados 32 estudos científicos com o composto, que incluíram 8.478 pessoas.
No Brasil, um estudo coordenado por Vasconcelos acompanhou 500 pessoas com alto risco de exposição ao vírus. “Nossos resultados até agora mostraram que essa é uma estratégia que funciona e que tem adesão alta. As pessoas vulneráveis ao HIV aderem tanto à consulta quanto ao uso do comprimido”, disse.
Estima-se que 150 000 pessoas utilizem esse medicamento no mundo, a maior parte delas está nos Estados Unidos. Lá, o composto foi aprovado em 2012 e seu uso cresce a cada ano. Um exemplo do impacto desse tipo de estratégia é a cidade de São Francisco, na Califórnia. Após a adoção do Truvada, o número de novos casos caiu quase 20% de 2013 para 2014.
Entre os americanos, o comprimido é popular na comunidade gay. O Grindr, um dos maiores aplicativos de encontros para esse público, acrescentou no ano passado a possibilidade utilizar o termo ‘on PrEP’ no perfil do usuário. Quem assinala essa opção sinaliza aos seus possíveis parceiros que está se protegendo do HIV. O mesmo aplicativo também acrescentou no início deste ano um novo ‘gaymoji’ relacionado à Prep — o emoji é um comprimido azul, igual ao Truvada.
As principais dúvidas sobre a Prep
Como funciona o medicamento? Ele bloqueia a entrada do vírus HIV no DNA das células de defesa do organismo, impedindo a sua replicação. A taxa de eficácia é de até 99%, segundo os estudos clínicos, desde que tomado corretamente. A indicação é de um comprimido, uma vez ao dia, que deve ser tomado regularmente, sem interrupções.
O uso da Prep exclui a necessidade do preservativo na relação sexual? Não. Deve ser um complemento a outras estratégias de prevenção, como a camisinha e o aconselhamento médico. O preservativo é a arma mais eficaz para proteger contra o HIV e evitar o contágio por outras doenças sexualmente transmissíveis, como a sífilis e a hepatite B.
Para quem a Prep é indicada? Para qualquer pessoa que tenha alto risco de infecção por HIV e que falha em se proteger adequadamente durante as relações sexuais. No Programa Prep Brasil, por exemplo, são elegíveis os homens que fazem sexo com homens, travestis e mulheres transexuais, que tenham praticado sexo anal sem preservativo com dois ou mais parceiros nos últimos 12 meses.
Tem efeitos colaterais? Sim. O efeito adverso mais grave é a insuficiência renal, que pode acometer 5% das pessoas. Por isso, quem utiliza o medicamento deve fazer acompanhamento trimestral para avaliar como está a saúde dos rins. Além disso, 16% relatam efeitos gastrointestinais, como náuseas e dores abdominais. Esses sintomas tendem a ser transitórios e a desaparecer após uso contínuo.
Quem inicia a Prep deve utilizá-la para sempre? Não necessariamente. Um exemplo seria um casal sorodiscordante que gostaria de ter um filho. O marido tem HIV, mas está com carga viral indetectável. A mulher pode utilizar o medicamento até engravidar, sem correr risco de contágio. Ou ainda um homem gay solteiro que relata dificuldades de usar a camisinha em todas as relações casuais. Nesse caso, o composto pode garantir uma proteção extra. Ele poderia interromper o uso quando decidir ter um parceiro fixo.
A bebida alcoólica tira o efeito da Prep? Não. A eficácia do Truvada é reduzida se não for utilizado corretamente.
Quem esqueceu uma vez de usar a camisinha deve usar a Prep? Não, nesse caso, a indicação é a utilização da terapia de pós-exposição. Deve-se procurar um serviço de saúde em até 72 horas para iniciar o esquema profilático com duração de 28 dias.
O Truvada pode aumentar a resistência ao HIV? Não. De acordo com a farmacêutica Gilead, o uso da Prep com Truvada não causa nenhum tipo de resistência ao vírus, desde que o usuário seja HIV negativo. Por isso, a empresa ressalta, é importante que o médico se assegure dessa condição e que a testagem para o HIV seja repetida a cada três meses.