Há passagens na vida tão comoventes que, muitas vezes, nada captura tão bem sua essência quanto uma imagem. A fotografia na página ao lado foi tirada no dia 26 de novembro de 2020 no United Memorial Medical Center, em Houston, nos Estados Unidos. Era uma quinta-feira, feriado de Ação de Graças, quando os americanos reúnem as famílias para agradecer as coisas boas do ano prestes a se encerrar.
Contudo, naquele dia não havia muito a ser festejado. Fazia oito meses que o mundo mergulhara na mais devastadora crise sanitária dos nossos tempos, causada por uma cepa nova de coronavírus, família viral que até um ano antes causava em humanos no máximo resfriados inconvenientes. Em Houston, assim como no mundo todo, amigos e familiares estavam isolados em suas casas. Nos hospitais, reinava o caos. A sobrecarga de pacientes e a exaustão física e emocional dos profissionais de saúde obrigados a lutar contra um inimigo que desafiava os livros de infectologia imperavam. Aos doentes, restava confiar naqueles homens e mulheres escondidos sob roupas e equipamentos de proteção, em algum Deus, para aqueles que tinham alguma crença, e lutar pela próxima respiração.
Morrer é sempre solitário, mas talvez a solidão no momento final nunca tenha sido tão cortante quanto entre os que perderam a vida longe de quem amavam durante a pandemia (são, até hoje, 6,5 milhões). Em um desses paradoxos da saga humana, nos ambientes hospitalares é que brotaram instantes de amor como o imortalizado no retrato. Ao acolher nos braços o senhor já cansado da batalha, o médico Joseph Varon concedeu a ele o consolo da empatia.
Faz um ano e dez meses que o gesto de Varon sintetizou o que acontecia nos hospitais naquele momento. Também se passaram mais de 25 meses de outras cenas tristemente comuns em 2020, como os enterros coletivos em Manaus; o lockdown em Wuhan, na China, de onde o vírus saiu para colocar o mundo de joelhos; e o abraço apartado por um plástico pendurado num varal de uma casa em Nova York. Hoje, o mundo é outro. Não há mais lockdowns — à exceção da China, que de tempos em tempos decreta o isolamento de cidades —, o trabalho, o estudo e a diversão voltaram, sem máscaras.
Nas instituições de saúde, pouco se vê do cenário de dois anos atrás. No Hospital Israelita Albert Einstein, onde foram registrados os dois primeiros casos da doença no Brasil, na quarta-feira 21 estavam internadas com coronavírus dezesseis pessoas. Em 25 de março de 2021, havia 300. No Sírio-Libanês, nove pacientes encontravam-se hospitalizados com Covid-19 na segunda-feira 19. Mas nenhum estava lá somente por causa da enfermidade. “Todos apresentam comorbidades”, contou Fernando Ganem, diretor-médico do hospital. No primeiro ano da pandemia, a instituição chegou a internar 300 pacientes em um dia. Einstein e Sírio suspenderam, agora, a produção dos boletins diários com os números de internações pela enfermidade. O Einstein parou de fazê-los em agosto. O Sírio, nesta semana. Não há por que mantê-los. A pandemia, finalmente, está acabando.
O retrato de alívio fornecido pelos números é cristalino. Enquanto em 20 de janeiro de 2021 cerca de 18 000 pessoas infectadas morreram no mundo, no domingo, 18 de setembro de 2022, o total de mortes foi de 531. Informações como essa, aliás, motivaram o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhnom, a anunciar, na semana passada, que o fim da crise sanitária está à vista. Sempre conservadora em projeções, a OMS endossou o posicionamento de autoridades de saúde mundiais que vêm sugerindo o término desde meados do primeiro semestre. Na ocasião, ganhou corpo a percepção de que a pandemia se encaminhava para o encerramento, principalmente depois do observado após o furacão causado pela chegada da ômicron, em novembro de 2021.
Quatro vezes mais transmissível do que a delta, a variante obrigou a instituição de novos lockdowns em capitais europeias e fez explodir os casos até março deste ano. O pior dos pesadelos parecia se materializar na figura de uma variante diferente de todas. No entanto, o que se viu foi o esperado em cenários pandêmicos: o vírus ganhou transmissibilidade, mas perdeu em letalidade. A transformação é fruto do processo de adaptação dos vírus — e não está sendo diferente com o Sars-CoV-2 — cujo objetivo não é destruir os hospedeiros, mas permanecer usando-os para multiplicar seu material genético. O caminho daqui em diante, portanto, será a convivência do ser humano com o novo coronavírus. É assim, aliás, que coexistimos com o influenza, o vírus da gripe. A comparação também ajuda a entender que a Covid-19 continuará fazendo vítimas, sim.
Até por essas razões, é preciso compreender o que significa dizer que uma pandemia acabou. Na segunda-feira 19, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, fez essa afirmação em relação à Covid-19. No entanto, elas não acabam com decretos ou declarações. Pela complexidade que as caracteriza, elas exigem muito mais do que vontade para que o término seja definido — daí deriva, inclusive, o fato de a OMS até agora não ter divulgado nada mais preciso a esse respeito. A verdade é que, nos episódios mais conhecidos da história, cada desenlace teve um perfil diferente. Na gripe espanhola, responsável por matar ao menos 50 milhões de pessoas ao redor do mundo entre 1918 e 1920, a cepa do influenza por trás da tragédia foi perdendo letalidade e lugar para outras linhagens, até que o caos se dissipou. Na crise provocada pelo influenza H1N1, que eclodiu em 2009, houve o anúncio formal do fim no dia 10 de agosto de 2010 com um comunicado da OMS informando que o vírus havia seguido seu curso. O H1N1 continua em circulação, mas sem potencial pandêmico.
Uma das dificuldades em estabelecer quando se encerra uma pandemia é a escolha dos preceitos técnicos que servirão de baliza. “Não existe, por exemplo, um indicador quantitativo de quantas mortes ‘são aceitáveis’. São critérios mais qualitativos do que quantitativos”, explica o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas. No caso da Covid-19, uma das métricas citadas pela OMS é o alcance de 70% de cobertura vacinal. Já estamos com 67%. Mas há outro aspecto fundamental. “Pandemias não são somente fenômenos biológicos”, diz Nicholas Christakis, da Universidade Yale, nos Estados Unidos. “Elas são também um acontecimento social e uma das formas pelas quais acabam é quando a sociedade concorda em tolerar o risco.”
O mundo encontra-se exatamente nesse ponto. Além de os dados biológicos evidenciarem a transição do vírus para a forma endêmica, a percepção da sociedade mudou. Da mesma forma que a humanidade entendeu que, embora a gripe mate de 290 000 a 650 000 pessoas por ano, a vida precisa seguir, ela agora enxerga a Covid-19 como mais uma doença com a qual o ser humano terá de lidar. E nesse ponto, ao menos, abrimos vantagem em relação ao vírus graças a uma empreitada científica sem precedentes. Saiu-se do zero, ou praticamente isso, na virada de 2019 para 2020, para o sequenciamento genético do coronavírus em apenas dezessete dias. E o mais extraordinário: a aplicação da primeira dose de vacina ocorreu 272 dias depois da decretação de pandemia. Hoje, há onze imunizantes aprovados, todos capazes de reduzir drasticamente o risco de que a doença evolua para formas graves. Deve-se a eles, em primeiro lugar, a queda nas internações e mortes. Medidas como o isolamento e o uso de máscaras, além de um arsenal de remédios e equipamentos, completaram o conjunto vitorioso.
Nunca será demais louvar o belo trabalho da ciência nesses anos. É fundamental ressaltar, porém, que as façanhas são resultado de décadas de investimento na construção do conhecimento e no desenvolvimento de tecnologias. A plataforma utilizada na fabricação da vacina da Pfizer-BioNTech, a primeira a ficar pronta, por exemplo, era estudada havia anos. Sua produção em tempo tão curto só foi possível porque as bases teóricas e tecnológicas estavam erguidas. “A pandemia evidenciou claramente a importância de investirmos em ciência”, diz Sidney Klajner, presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. O hospital integrou um pool de instituições brasileiras responsável pela realização de algumas das mais relevantes pesquisas sobre a doença, incluindo o estudo que comprovou a ineficácia da hidroxicloroquina.
A compreensão da ciência como valor imprescindível está entre os legados da pandemia. E essas heranças, boas ou ruins, nos obrigam a fazer a lição de casa de hoje em diante de modo a aprimorar o que deu certo e consertar o que está errado. Parte das falhas foi descrita em um duro relatório feito por especialistas reunidos pela revista científica The Lancet e publicado na semana passada. A principal crítica foi a ausência de trabalho coordenado entre organismos internacionais e os países, o que contribuiu para atrasar as respostas ao crescimento de casos. Os cientistas calcularam que a lentidão encaminhou 17,7 milhões de mortes entre 2020 e 2021 que poderiam ser evitadas.
No Brasil, a ausência de uma política unificada e o discurso do governo do presidente Jair Bolsonaro, ao subestimar a gravidade da doença e desprezar as vacinas, custaram milhares de vidas. De acordo com o médico Pedro Hallal, 400 000 das 685 500 mortes não teriam acontecido se o Executivo federal tivesse escolhido a ciência e não o proselitismo. Há um natural custo político. Uma pesquisa da Genial/Quaest mostrou que, entre os 40% dos eleitores muito preocupados com a Covid-19, 55% votariam no ex-presidente Lula. Entre os 18% nada preocupados, a preferência é por Bolsonaro. A parte lamentável desses números é saber que ainda existem negacionistas. Contudo, o processo histórico, construído por avanços e retrocessos, caminha sempre em direção ao progresso. E a pandemia, perto do fim, certamente foi um ponto de inflexão decisivo nessa trajetória. Não podemos — e não vamos — nos esquecer de tudo o que ela nos ensinou, em meio ao pranto e à resiliência.
Publicado em VEJA de 28 de setembro de 2022, edição nº 2808