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Os bastidores de um suicídio assistido realizado na Suíça

País é destino do 'turismo de direitos', procurado por pessoas que não têm acesso à morte assistida na terra natal; se você precisa conversar, procure o CVV

Por Juliana Dantas*
Atualizado em 11 nov 2024, 13h43 - Publicado em 11 nov 2024, 12h45

No dia 29 de novembro de 2019 fazia frio e chovia muito no outono da Basileia, no interior suíço. A cidade, banhada pelo Rio Reno, já perto da França e da Alemanha, fica a cerca de 100 km da capital, Berna.

Lá estava uma capixaba residente de Minas Gerais. No dia anterior, ela havia recebido uma ligação com o retorno de um pedido importante: poderia acompanhar um suicídio assistido. O desejo não era à toa: a advogada Luciana Dadalto é uma das maiores pesquisadoras em bioética do Brasil e gostaria de entender como se dá o procedimento. A profissional se dedica especialmente aos direitos de pacientes, à dignidade do viver e do morrer e defende a autonomia como valor de cada ser humano. Testemunhar um suicídio assistido na Suíça é mais um dos elementos importantes sobre os quais se debruça na carreira. 

A professora ficou sabendo, então, que acompanharia as últimas horas de um homem de 65 anos: um australiano a 14.600 km de casa. É que a Suíça é o único país que recebe legalmente estrangeiros para realizar o procedimento. Três organizações aceitam cidadãos não-suíços: a Life Circle, a Dignitas, responsável pela morte assistida do escritor brasileiro Antonio Cicero, e a Pegasos, cenário desta história.

 O homem que havia decidido partir não suportava mais as manifestações do Parkinson — e nem lidar com a progressão que ainda estaria por vir. É preciso estar lúcido e orientado durante todo o processo burocrático, e também na hora da partida: a clareza da vontade do paciente é condição irrevogável para o suicídio assistido. O procedimento acontece para aqueles que relatam sofrimento intolerável, geralmente diante de condições de saúde graves, crônicas, irreversíveis e/ou terminais.

“Eu entrei lá e eles estavam revisando toda a papelada.”, relembra Luciana. Ela havia chegado com frio e ensopada do temporal à sala do que parecia uma residência comum. A casa abriga o escritório da Pegasos e também a singela estrutura onde ocorrem os suicídios assistidos. Era muito papel: autorização para o recebimento de um fármaco letal, autorização para a cremação, checagens de testamentos, de documentos pessoais, entre outros. 

Estavam o paciente, a esposa dele e um dos filhos. O outro, que morava em Londres, não pôde deixar o trabalho. É que ele investiu todo o tempo das férias em um último desejo da família: foram os quatro, juntos, viajar por meia dúzia de países, em mais de um continente, antes de o destino literalmente final do pai ser a Suíça.

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Na Pegasos, depois da validação dos documentos, foram todos para um quarto onde havia uma cama hospitalar, onde o homem se deitou. Ele optou por não beber a substância letal mas, sim, administrá-la por acesso venoso (ou seja, na veia). Os profissionais de saúde pegaram uma bolsa de soro, retiraram o soro, e a preencheram com o medicamento. “O coordenador da organização perguntou se eu queria ajudar – e eu ajudei.”, relata a advogada. Até esse momento, o acesso não havia sido feito ao corpo do paciente.

O direito de morrer é uma bondade humana, uma compaixão que deveria nos guiar em todas as nossas interações ao longo da vida. É absurdo que ainda precisemos implorar por uma maneira gentil, segura e digna de partir quando chega a hora de encerrar nossa própria e preciosa existência aqui

R. Habegger, fundador da Pegasos, no site da organização

Como é de praxe, todos aqueles que não eram da família se retiraram do quarto para que a família tivesse a privacidade da despedida. Naquele dia, um médico anestesista, um psiquiatra, o coordenador da Pegasos e Luciana. Do lado de fora, os quatro se acomodaram em um sofá.

Os homens, habituados ao procedimento, advertiram Luciana de que esta etapa poderia demorar.  “Me disseram: ‘agora é preciso ter paciência, para cada família é um tempo.’” Contudo, o filho abriu a porta do quarto uns cinco minutos depois: “‘Meu pai está pronto’, ele disse.” 

A bolsa de soro, agora preenchida com o fármaco letal, foi conectada ao acesso venoso. Foi entregue nas mãos do paciente o dispositivo que libera ou retém o líquido. Estava fechado. Ao australiano foi explicado que no momento em que fosse aberto, uma dose letal entraria pelo corpo dele e, então, ele morreria. Novamente, confirmou sua convicção. Perguntas básicas foram feitas: qual é o seu nome? Você sabe que dia é hoje? De onde você é? Por que você está aqui? Por que você quer morrer? Qual doença você tem? Você está aqui por livre e espontânea vontade? Você sabe o que vai acontecer quando abrir este dispositivo? Ele sabia: “Sim, eu vou morrer. E é exatamente o que quero. Isso já não é mais vida”. Tudo foi registrado por duas câmeras de vídeo. Mais tarde, essas imagens viriam a ser entregues para a polícia.

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Morte assistida: Em procedimento, fármaco letal é administrado pelo próprio paciente
Suicídio assistido: Em procedimento, fármaco letal é administrado pelo próprio paciente (Luciana Dadalto/Arquivo pessoal)

O homem deu um beijo na esposa, deu um beijo no filho. Abriu o dispositivo e deixou a substância letal correr em suas veias. “Em coisa de dois ou três minutos, ele perdeu a consciência, o médico foi até ele e confirmou o óbito.”, conta Luciana.

Caso de polícia

Sim, o suicídio assistido é legalizado na Suíça, mas a polícia precisa ser imediatamente comunicada após a partida do paciente. E aí começa mais uma parte burocrática. Naquele dia, os policiais levaram cerca de uma hora para chegar. “Uma demora angustiante, o clima estava desconfortável.”, salienta Luciana. “Ao mesmo tempo, tive a oportunidade de conversar com a esposa, com o filho, agradeci a eles por terem me deixado acompanhar. Me surpreendi quando a esposa quis me agradecer de volta: ‘obrigada por lutar para que outras pessoas possam ter esse direito’”.

Eles relataram que, na Austrália, o estado de Victoria havia sido o primeiro a permitir o suicídio assistido, havia poucos meses. Mas havia uma regra de que o cidadão deveria residir no local por pelo menos um ano — e esse tempo o marido dela não tinha. No mês seguinte à morte dele, a Austrália Ocidental foi o segundo estado a liberar a prática.

A família não aceitou o desejo do paciente com facilidade. Foram alguns meses de conversa até que viesse a compreensão. “A mulher me disse: ‘eu comecei a perceber que aquele homem já não era mais meu marido, que ele já não conseguia sorrir como antes, ser feliz como antes, e eu notei que era egoísmo da minha parte não auxiliá-lo.’”, revela Luciana.

Do diagnóstico até ali já se somavam 12 anos. Três anos de deterioração mais flagrante e os três últimos meses de perda de todas as funcionalidades principais. Foram inúmeros tratamentos, inclusive experimentais. Não deu.

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Em meio a essa conversa, a polícia chegou. Solícitos — mas, ainda assim, policiais, com arma no coldre e tudo. Uma cena que, segundo Luciana, destoava um pouco do ambiente. Conversaram formalmente com todos os presentes, inclusive com ela, assistiram às imagens filmadas. O trabalho era para confirmar se o paciente estava de fato lúcido e não havia sido coagido a morrer. Não havia.

Serviço da polícia feito, era a vez de aguardar a equipe equivalente à do nosso Instituto Médico Legal (IML). Mas ninguém da família, nem nenhuma testemunha precisava mais esperar, e todos podiam ir embora. “A esposa e o filho estavam com passagem de volta para a Austrália agendada para o dia seguinte!”, exclama. O processo de cremação ainda levaria 72 horas e as cinzas seriam enviadas à Austrália por correio. “Foi uma das experiências mais intensas da minha vida, saí dali muito impactada”, confidencia.

“Como pesquisadora, percebi o quanto é importante aliar teoria e prática. O que aprendi nesses dois dias, nenhum livro, palestra ou artigo científico será capaz de me ensinar.”, ressalta Luciana. “Como pessoa, aprendi a respeitar ainda mais o querer do outro. Sem julgamentos, com compaixão.”, finaliza.

‘Turismo de direitos’

Morrer na Suíça não é para qualquer um: estamos falando da ordem dos 10 mil francos suíços – ou cerca de R$ 65 mil, na sondagem mais fresca ao câmbio. Isso sem contar a locomoção, a hospedagem, a alimentação e tudo o que uma viagem demanda. O valor custeia consultas médicas que atestem a condição de quem quer encerrar o próprio sofrimento, todo o encaminhamento burocrático, os profissionais de saúde envolvidos, o fármaco letal, a cremação, entre outros detalhes.

O suicídio assistido faz da Suíça uma das nações que são destinos do chamado ‘turismo de direitos’: em busca do que entendem como uma morte digna, chegam estrangeiros de toda a parte. O mesmo movimento acontece, por exemplo, quando, por desejar de um aborto seguro e legal, alguém deixa o próprio país e segue para outro em que a lei autorize. 

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MORTE ASSISTIDA: Processo custa 10 mil francos suíços -- ou cerca de R$ 65 mil, sem contar locomoção, hospedagem, alimentação e demais gastos da viagem
Acesso: Processo custa 10 mil francos suíços — ou cerca de R$ 65 mil, sem contar locomoção, hospedagem, alimentação e demais gastos da viagem (Luciana Dadalto/Arquivo pessoal)

A Suíça não permite a eutanásia, que também é um tipo de morte assistida (quando há assistência), mas se difere do suicídio assistido. No primeiro caso, quem administra a substância letal é um profissional de saúde, geralmente um médico. No segundo, esse profissional apenas prescreve e orienta, mas quem administra o medicamento é o próprio paciente. 

No Brasil, nenhum tipo de morte assistida é permitido. Para o alívio de sofrimento após o diagnóstico de uma doença grave, os cuidados paliativos não só estão em crescimento como são recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Em nada se assemelham a procedimentos que induzem a morte e não são só para quem está perto da terminalidade. Trata-se de uma abordagem de qualidade de vida que, idealmente, conta com uma gama diversificada de profissionais que olham para um ser humano como um todo, com seus desejos e medos, necessidades e gargalos. Os cuidados paliativos não são abandono, nem para quando “não há nada mais a se fazer.” Também não excluem os tratamentos curativos mas, sim, jogam junto com a equipe que vai em busca de minimizar ou zerar a doença.

Avanços e retrocessos

No último mês de setembro, Luciana esteve em um evento na Europa, o World Right to Die Conference 2024 (ou a Conferência Mundial do Direito de Morrer, em livre tradução), na Irlanda. A ideia era recalibrar o olhar sobre o que está sendo discutido em diferentes países sobre morte assistida e cuidados em fim de vida.

E o que ela pôde aferir é que, em lugares em que a eutanásia e/ou o suicídio assistido já são legalizados, a conversa agora é sobre a revisão dos critérios de quem pode realizar os procedimentos. O que é, afinal, uma doença terminal? Como ficam as questões de saúde mental? Pessoas idosas, com diversas comorbidades, devem poder escolher morrer?

Mesmo em países em que o acesso aos cuidados paliativos é sólido, e as múltiplas dores de alguém com uma doença grave podem ser amenizadas, ainda há pacientes que consideram o próprio sofrimento intolerável. E essas pessoas precisam ser vistas.

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Em nações em que a morte assistida não é permitida, o diálogo ainda é incipiente. As movimentações buscam mobilizar a sociedade civil e legisladores, mas têm sido impactadas pelo avanço da ultradireita e pela guinada ao conservadorismo.

Aviso

Se você precisar conversar, saiba que o CVV é um canal gratuito, sigiloso e 24 horas, que atende todo o país. Pelo telefone 188 ou pelo site.  Para agendamento de consultas com psicólogos ou psiquiatras, gratuitas ou a preços sociais, conheça o mapasaudemental.com.br

*Juliana Dantas é jornalista especializada em envelhecimento, saúde mental, Cuidados Paliativos, morte e luto. É diretora de comunicação do Movimento inFINITO e diretora do Instituto Ana Michelle Soares

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