Brasil ganha política de cuidados paliativos, um marco para a finitude
Especialista diz a VEJA que nova estratégia traz dignidade e qualidade de vida ao paciente; investimento anual será de R$ 887 milhões
Demanda de pacientes e familiares, a implementação da Política Nacional de Cuidados Paliativos (PNCP) no Sistema Único de Saúde (SUS) agora é realidade e foi anunciada em evento do Ministério da Saúde nesta quinta-feira, 23. A política tem como objetivo de proporcionar alívio da dor e do sofrimento em pessoas com doenças graves ameaçadoras ou limitadoras da vida, bem como estender esse cuidado a seus parentes e cuidadores. É um conjunto de ações que visa a valorização da vida e tratar a morte como um processo natural, respeitando os valores culturais e a autonomia dos pacientes.
Em discussão desde o final do ano passado, a estratégia prevê um investimento de R$ 887 milhões por ano e a habilitação de 1.321 mil equipes de profissionais para oferecer suporte e acolhimento aos cerca de 625 mil pacientes que necessitam de cuidados paliativos. Segundo o Ministério da Saúde, as equipes vão exercer atividades nas redes de saúde e também realizarão atendimento domiciliar.
Para Tom Almeida, ativista pelo bem morrer e criador do movimento inFINITO, destinado a ampliar e fomentar as discussões acerca da morte e da finitude, a política é um marco significativo e representa um importante reconhecimento por parte do ministério de que os cuidados paliativos são importantes para a saúde e cuidado da população. E não só estão relacionados com a qualidade de morte, mas também com a qualidade de vida.
“A lei orienta e articula investimentos nos cuidados paliativos e em formação de profissionais. Com isso, estimula o crescimento desses serviços em todas as instâncias no país”, comemora Almeida.
Cuidados paliativos não são sentença de morte
Almeida prevê que as políticas não tenham impactos imediatos na população, devido a processos robustos e mais lentos como formação de profissionais e articulação de investimentos. Porém, a visibilidade que a política trouxe aos cuidados paliativos já pode ser considerada uma grande vitória, pois serve para fortalecer e estimular os profissionais que já atuam nesse serviço, além de fomentar o debate com a sociedade.
“Temos de preparar a população e os pacientes para que nós também possamos reivindicar os cuidados paliativos”, argumenta o ativista. “Hoje existem casos de pacientes que rejeitam os cuidados, pois os entendem como um abandono do tratamento, uma sentença de morte, sendo que, na verdade, é o oposto”, conclui.
Nesse processo de diálogo, desconstruir alguns tabus é necessário. Assim, é fundamental que os cuidados paliativos sejam desassociados da terminalidade. “Por existir uma quantidade ainda insuficiente desse serviço no país, a equipe de cuidados paliativos, quando implementada no hospital, vai se dedicar ao paciente que está em maior sofrimento” , afirma o ativista. “Assim, por uma questão de logística e disponibilidade, os cuidados acabam se fazendo presentes apenas no final de vida. O que não é ideal e reforça essa associação errônea “, explica.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que esses cuidados sejam implementados no momento do diagnóstico de uma doença grave que ameaça a vida. Além disso, a oferta antecipada desse cuidado reduz internações hospitalares desnecessárias. No entanto, os serviços ainda são pouco representativos no Brasil e no mundo. Em todo o globo, estima-se que apenas 14% das pessoas que precisam de cuidados paliativos atualmente são assistidos.
Número que é alarmante visto que, ainda segundo a OMS, a necessidade global de cuidados paliativos continuará a crescer como resultado do envelhecimento das populações e do aumento da carga de doenças não transmissíveis e algumas doenças transmissíveis. As estimativas são que, a cada ano, 56,8 milhões de pessoas, incluindo 25,7 milhões no último ano de vida, necessitam desses cuidados.
Consequências da incompreensão
Um dos desafios para aumentar o conhecimento sobre esse tipo de atendimento é a resistência é dos próprios profissionais de saúde, tendo em vista que alguns acham já praticam os cuidados paliativos e acreditam que o gerenciamento de dor e de efeitos colaterais é realizado de maneira satisfatória. Por isso, comumente, eles convocam os especialistas em cuidados paliativos só quando não “há mais nada a fazer”. Outras questões amplas e complexas surgem nesse debate, como hospitais e instituições de saúde que consideram os cuidados paliativos um investimento desnecessário.
“Basicamente, tudo isso vem do não entendimento exato do que são cuidados paliativos, quando na verdade eles são uma boa notícia no meio de uma notícia ruim, que é o diagnóstico de uma doença grave” , esclarece Almeida.
Para ele, esses cuidados não são só importantes para amenizar a dor física do paciente, mas também para mitigar outras dores como as emocionais e sociais que, geralmente, se manifestam por meio de ansiedade e insegurança em relação ao bem-estar da família, à empregabilidade e à situação financeira do próprio paciente.
Pacientes em cuidados paliativos vivem mais
Um estudo publicado no jornal acadêmico The New England Journal of Medicine investigou o impacto de introduzir cuidados paliativos após o diagnóstico em pacientes com câncer de pulmão metastático, comparando com aqueles que receberam apenas os cuidados oncológicos padrão.
Os cientistas constaram que os pacientes que receberam cuidados paliativos viveram, em média, cerca de 2,7 meses a mais do que aqueles que receberam apenas o cuidado oncológico padrão. Especificamente, a sobrevida média foi de 11,6 meses no grupo que recebeu cuidados paliativos precoces comparado com 8,9 meses no grupo de cuidados padrão.
“Cuidados paliativos trazem dignidade, ou seja, controle e validação da dor. Isso implica um sono de maior qualidade, mais apetite, melhor vida sexual e mais disposição”, afirma o ativista. “Cuidados paliativos é viver mais e viver melhor”, finaliza.
Entenda a Política Nacional de Cuidados Paliativos
Estrutura e equipes multidisciplinares
- Serão formadas 1.321 equipes multidisciplinares compostas por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais da saúde
- Investimento anual de R$ 887 milhões para sustentar essas equipes e promover a educação permanente dos profissionais
Amplo escopo de atuação
- Cobertura integral do ciclo de vida dos pacientes, oferecendo cuidados paliativos desde o diagnóstico até a fase terminal, independentemente do tipo de doença ameaçadora
- Inclusão de serviços de telessaúde para ampliar o alcance e a eficácia dos cuidados paliativos
- Apoio pelo Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proadi-SUS)
Educação e capacitação
- Investimento na formação contínua dos profissionais de saúde para garantir que estejam sempre preparados para oferecer cuidados paliativos de qualidade
- A política visa a criar uma cultura de cuidados paliativos entre profissionais e na sociedade, destacando a importância desses cuidados como um direito essencial de todos os cidadãos
Diversidade de atendimento
- Os cuidados paliativos serão oferecidos em hospitais gerais, Centros de Atenção Oncológica (CACONs), hospitais especializados em câncer e por equipes do programa Melhor em Casa.
- Atendimento físico (alívio da dor e outros sintomas), psicoemocional (suporte psicológico), espiritual (de acordo com as crenças do paciente) e social (manutenção do convívio social e acesso a recursos).
Credenciamento e mapeamento
- Implementação de um sistema de credenciamento específico para facilitar o acesso aos serviços de cuidados paliativos e obter um panorama preciso da oferta disponível
- A Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e a Frente PaliATIVISTAS estão mapeando locais que já oferecem esses cuidados para melhorar a integração e a coordenação dos serviços
Participação e apoio
- A política foi construída com a participação da sociedade civil, destacando a importância do apoio comunitário e da colaboração entre diferentes setores
- Extensão dos cuidados também aos familiares e cuidadores, proporcionando suporte emocional e prático durante todo o processo de tratamento
Enfoque humanizado e individualizado:
- Respeito às preferências, valores e crenças culturais e religiosas dos pacientes, garantindo que suas decisões sejam consideradas e respeitadas
- Atenção especial na tomada de decisão substituta no caso de crianças e pessoas curateladas ou tuteladas
- O objetivo central é melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares, proporcionando cuidados que aliviem o sofrimento e promovam o bem-estar
De forma geral, as medidas implicam uma abordagem mais holística e integrada dos cuidados de saúde no SUS, focando não apenas no tratamento da doença, mas também no bem-estar geral do paciente. A implementação da política visa a garantir que os cuidados paliativos sejam acessíveis, eficazes e humanizados, melhorando significativamente a qualidade de vida das pessoas em situação de doença grave no Brasil.