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O adeus de Antonio Cicero e a urgência de conversarmos sobre autonomia no fim da vida

Morte assistida ainda é tabu em grande parte do mundo e não é permitida no Brasil; se precisar conversar, saiba que o CVV é um canal gratuito, sigiloso e 24h

Por Juliana Dantas*
28 out 2024, 15h00

A carta de despedida de autoria de Antonio Cicero, divulgada depois do suicídio assistido do escritor, legalmente realizado na Suíça na última quarta-feira, 23, rodou o mundo. Teve impacto especialmente no Brasil, terra natal do poeta, conhecido tanto na literatura — a ponto de ocupar a cadeira de número 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL) — quanto em canções populares, que atravessam a cultura brasileira, como “O último romântico”, que compôs com Lulu Santos, ou “Fullgás”, escrita em coautoria com Marina Lima, sua irmã.

A carta é assertiva, redigida por alguém que demonstra lucidez, traz carga poética (como não poderia deixar de ser), um pulso firme calcado na dignidade do viver e do morrer, e levanta muitas camadas de um assunto que ainda é tabu em grande parte do mundo: a morte assistida

Na Suíça, apenas o suicídio assistido é permitido por lei. A eutanásia, no entanto, não. A diferença entre as duas práticas é, basicamente, quem administra a dose letal de medicamento. No suicídio, a própria pessoa que morrerá. Na eutanásia, um profissional de saúde. Nos dois casos, a morte é “assistida” porque conta com assistência e prescrição por parte de um médico ou outro especialista. Também nos dois casos, a morte acontece a pedido do paciente, geralmente em condições de saúde graves, crônicas, irreversíveis e/ ou terminais. Um sofrimento relatado como intolerável.

A repercussão da carta de despedida de Antonio Cicero exprime a urgência que temos em conversar sobre autonomia e o que é dignidade no fim de vida. Sobretudo porque explicita o quão despreparados estamos para lidar com as delicadezas da temática. A Organização Mundial de Saúde (OMS) é taxativa ao dizer que nenhuma carta escrita por uma pessoa que virá a morrer por suicídio deve ser divulgada.

Não há clareza sobre cartas de despedida em caso de suicídio assistido. O que sabemos é que a orientação para que cartas de suicídio não sejam publicadas é ainda mais enfática para veículos de imprensa, que têm alcance massivo. Contudo, com a partida de Antonio Cicero, essa barreira foi mais do que extrapolada — pela mídia, por artistas, escritores, leitores e tantos outros mais. 

A suicidologia entende que o suicídio é um evento tão impactante que pode haver comportamento por contágio. O mais conhecido é negativo: o Efeito Werther. Com o nome do personagem principal do livro mais célebre de Goethe, o fenômeno busca explicar pessoas que tomam a decisão definitiva pelo suicídio a partir de identificação pelos motivos ou pela personalidade de alguém que morreu por suicídio.

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Em contrapartida, a leitura do Efeito Papageno, aí inspirado na obra de Mozart, revela que uma conversa aberta, honesta e responsável sobre suicídio pode inibir o comportamento de quem estava considerando tirar a própria vida. O Efeito Papageno joga luz em uma questão fundamental: quando há uma cobertura responsável a respeito de um suicídio, com todos os cuidados recomendados pela OMS, todos ficamos mais protegidos. 

Em nome de uma pretensa liberdade, quem podemos estar aprisionando? Pela compreensão daqueles que se debruçam sobre a temática do suicídio, acompanhar as orientações da OMS é fundamental. O entendimento é de que pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, sobretudo as que se identificarem com as condições de quem redigiu o adeus, podem absorver o conteúdo como uma gota d’água. Em outras palavras, uma quantidade de pessoas que jamais saberemos qual é pode vir a morrer por suicídio a partir dali.

O suicídio é um fenômeno multifatorial e envolve diversos pormenores, como contexto social, financeiro, familiar, ambiental, de saúde mental, tecnológico, fatores de risco e fatores de proteção de cada indivíduo. Para quem está no limite, uma carta de despedida pode reforçar a crença de que o suicídio é uma saída. 

A maioria de nós não está abrigada pelas fronteiras suíças: o acesso à morte assistida é restrito; o alcance da carta, não. Como sabemos, em países em que não temos autonomia sobre nossos corpos, o suicídio tem cargas extras de dor. Um suicídio com estrutura e amparo legais é diferente de um suicídio como acontece no Brasil, na clandestinidade, por meios cruéis. Nesses casos, a carta (ou até mesmo áudio ou vídeo) é um recorte, um retrato de um momento agudo, de provável profundo sofrimento, de quem está à beira de um ato extremo e definitivo.

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Pelo que se tem notícia do processo de Antonio Cicero, foi feita uma série de exames que atestaram o processo da doença de Alzheimer que, como sabemos, é irreversível, e só então a morte assistida foi autorizada. Morreu em paz, sem dor, com a dignidade em que acreditava. A carta dele, portanto, carregaria consigo uma outra função, um outro peso? Trata-se de um conteúdo redigido sob a certeza do amadurecimento de quem não quer enfrentar as conhecidas manifestações do Alzheimer.

 Até que ponto uma carta de despedida é a bandeira mais forte a ser levantada na necessária luta pela autonomia dos nossos corpos? É claro que a decisão de Antonio Cicero é um chamariz — ou gancho, como dizemos no jornalismo — para essa conversa, que precisa acontecer, e logo. Mas divulgar a íntegra do conteúdo é o único jeito de suscitarmos o assunto? Talvez nem toda carta de despedida seja uma carta de suicídio. Se o mesmo conteúdo escrito tivesse sido, por exemplo, falado por Antonio Cicero em uma entrevista a uma emissora de televisão, semanas antes da própria morte, teria o mesmo impacto e a restrição da OMS?

Confesso que tenho vontade de me juntar aos que defendem enfaticamente a divulgação da carta de Antonio Cicero como voz poética, como voz de luta, como voz de um indivíduo íntegro e altivo. A questão aqui não é concordar ou discordar da carta, ou mesmo da decisão. É que a temática do suicídio aflora os nossos ânimos e é justamente aí que precisamos respirar fundo, dar um passo para trás e olhar para a questão com sobriedade.

Se muitos especialistas em suicidologia afirmam que pessoas em situação de vulnerabilidade podem ser induzidas à própria morte, até que ponto terá valido a pena divulgar uma carta de despedida? Haveria um número razoável de mortes por contágio que toleramos só para que a carta possa se manter exposta?

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Tanto na teoria quanto na prática, o suicídio assistido e a eutanásia são completamente diferentes do suicídio puro e simples. O ponto, aqui, é o impacto que aquele encadeamento de palavras têm em quem cogita tirar a própria vida.

Em qualquer estrutura básica de comunicação há o emissor, o receptor, o meio do caminho e eventuais ruídos. O emissor, neste caso, tem direito a querer que sua palavra se espalhe. O receptor que não flerta com a ideação suicida absorve o conteúdo de uma determinada forma. Mas e quem flerta? Não estou totalmente certa disso, mas creio que o olhar centrado nesses receptores deva ser prioridade.

Acredito que essa discussão tenha mais perguntas do que respostas. Mas, na dúvida, adotar um posicionamento seguro, sob orientações da OMS, me parece o mais adequado a fazer. Ainda que soe conservador ou mesmo que, em alguma medida, desconsidere as nuances do caso específico de Antonio Cicero.

Precisamos falar mais e melhor sobre autonomia e o que é dignidade para cada um de nós, especialmente no fim de vida. No Brasil, nenhuma forma de morte assistida é permitida. Sequer estamos perto de uma conversa madura a respeito. Mas me parece que — ainda bem — a percepção de que os avanços são urgentes está aumentando. Um processo irreversível. Como diria um amigo meu: “A pasta de dente não volta para o tubo”.  

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Aviso

Se você precisar conversar, saiba que o CVV é um canal gratuito, sigiloso e 24 horas, que atende todo o país. Pelo telefone 188 ou pelo site cvv.org.br.  Para agendamento de consultas com psicólogos ou psiquiatras, gratuitas ou a preços sociais, conheça o mapasaudemental.com.br 

*Juliana Dantas é jornalista especializada em envelhecimento, saúde mental, Cuidados Paliativos, morte e luto. É diretora de comunicação do Movimento inFINITO e diretora do Instituto Ana Michelle Soares

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