Bruno Simões, especialista em TI, com Mary e os filhos, Helena e Pedro –TROCA DE ENDEREÇO
“Passamos a primeira parte da quarentena em um apartamento em São Paulo. A sensação era de aprisionamento. Decidimos então ficar o resto do isolamento em Jundiaí, no interior. As crianças se adaptaram rapidamente e começaram a interagir com a natureza. Se agora falamos em voltar para nosso endereço antigo, elas protestam. Nosso trabalho ainda está na capital, então teremos que viajar bastante quando tudo isso passar, mesmo assim sabemos que valerá a pena, e o home office será fundamental. Estamos mais calmos e tranquilos.”
Só quem veio de Marte, e de lá chegou agora mesmo, é que não viu a profusão de memes, camisetas e cartões com a expressão imperativa Keep Calm e…, depois da conjunção, um conselho qualquer metido a engraçadinho: “chute o balde”, “foca nos estudos”, “estou de férias” etc. Keep Calm and Carry On, mantenha a calma e siga em frente, foi uma frase motivacional criada (e não utilizada na ocasião) pelas autoridades britânicas durante a II Guerra Mundial para manter elevado o moral da população civil debaixo de bombardeio alemão. Não seria exagero dizer que o slogan, em sua versão original, poderia ser aplicado ao nosso tempo, o da pandemia, do isolamento social, de vidas partidas ao meio, de avós afastados de netos, em decorrência do novo coronavírus. É ter paciência e caminhar ou, como lembrou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, um pouco antes de deixar o governo, numa citação que será para sempre recuperada, extraída do lirismo de Paulinho da Viola, “faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro leva o barco devagar”. A prudência não exclui uma das mais evidentes vontades do aqui e agora em todo o mundo: o desejo de mudar de vida, se não radicalmente, ao menos de modo a encaixá-la no que vem por aí. É percepção que anda na cabeça, anda nas bocas, entrou nas sessões de terapia on-line e, recentemente, também nas presenciais, que aos poucos vão sendo retomadas. “O longo tempo em casa foi um impulso para que caísse a ficha sobre o que precisava ser mudado, com urgência, de modo a encontrar mais satisfação e bem-estar”, diz Alfredo Maluf, psiquiatra do Hospital Albert Einstein.
UM NOVO JEITO DE CONSUMIR
“Durante a quarentena me dei conta de que tinha muito mais coisas do que realmente precisava. Olhei pela primeira vez com atenção para meu guarda-roupa com 300 peças e vi muitas que nunca foram usadas e até com etiqueta. Decidi fazer uma limpa: tirei cinco sacos cheios para doação. Percebi que algumas compras eram feitas apenas para descontar o stress da rotina. Decidi que, se uma peça nova entrar no armário, outra antiga terá que sair.”
Não há, ainda, levantamento estatístico que ampare a mudança de comportamento, mas existem indícios palpáveis de que algo trincou e precisa ser colado. Houve, por exemplo, inédito aumento de buscas no Google pelo termo “meditação” — 43% em abril em comparação com dezembro de 2019, o maior índice em dezesseis anos de levantamento. Uma das maiores imobiliárias de São Paulo, a Lello, que atende as classes média e alta, identificou salto de 40% de interesse por casas amplas com cômodos para home office. Apartamentos em bairros badalados, próximos a lugares repletos de serviços, bares e supermercados, tornaram-se desinteressantes. Endereços mais amplos e perto de áreas verdes são os preferidos agora. “As residências se transformaram em santuários protegidos”, afirma Stefano Arpassy, da consultoria de tendências WGSN Mindset. Há, portanto, uma guinada como não se via fazia décadas, desde que a falta de segurança e a criminalidade empurraram a sociedade para condomínios de apartamentos e shopping centers. Diz a psicóloga Patricia Bader, da Rede D’Or: “Muitas vezes estamos em um modo automático tão profundo que esquecemos o que é de fato relevante para nossa existência”. Olha-se ao redor, veem-se as estatísticas, com esperança de melhora depois dos momentos mais dramáticos do surto, apesar do vaivém, e um caminho parece inevitável: o da adaptação, em todos os movimentos diários.
Poucos aspectos do cotidiano sofreram uma ruptura tão decisiva quanto o mundo do trabalho, de mãos dadas com o das escolas, de crianças em casa. Pais e mães trabalhando, filhos tentando estudar, tudo junto e misturado, o inevitável frenesi caseiro — e, como eventual subproduto dessa nova dinâmica, um aumento de 18,7% no número de divórcios no Brasil em junho, na comparação com o mês anterior. Fazer o quê? O home office ganhou tração, é compulsório, em seus diversos modelos, e dele sairemos diferentes. O que se ensaia nas empresas é uma movimentação quase tão estrondosa quanto a da Revolução Industrial, mas às avessas, com milhões de trabalhadores voltando para seus lares. Uma pesquisa realizada pela Fundação Instituto de Administração (FIA), de São Paulo, com quase 140 empresas brasileiras em abril deste ano mostrou que 46% delas adotaram o sistema de atividades domésticas durante a pandemia. E, claro, brotaram dificuldades que, se não são intransponíveis, podem ser bem chatas.
Um estudo feito pela rede social LinkedIn com 2 000 profissionais relata aumento do stress e da ansiedade (62% dos entrevistados) e sensação de solidão, que atinge 39% do grupo. “Em relação ao trabalho, tornou-se comum entre meus pacientes a reclamação da ausência do bate-papo com os colegas, do café no meio da tarde e de toda interação social que envolve e enriquece a vida no escritório”, diz o psicólogo clínico Artur Scarpato. A saudade do que se perdeu, porém, não é sinônimo de retomar tudo como dantes. A nova vida profissional, enfim, virá de outro modo. Segundo levantamento feito pela recrutadora Talenses, de São Paulo, 60% dos homens e 52% das mulheres afirmam que o mais desejável para o home office é poder praticá-lo de duas a três vezes na semana. Um estudo interno e global da Microsoft entrega resultados mais evidentes: 82% dos gerentes relataram a vontade de ver implementadas políticas de trabalho remoto mais maleáveis.
ADEUS AO ADORADO SALTO ALTO
“Por dezesseis anos trabalhei de um jeito frenético, chegava a bater dezesseis horas de expediente por dia, almoçava na frente do computador, dormia pouquíssimas horas e, quando precisava descansar por mais tempo, recorria a remédios. O isolamento me fez perceber que poderia, sim, me realizar trabalhando menos para ter mais tempo para mim. Mudei de emprego, diminuí o ritmo, troquei o salto alto por calçados mais confortáveis e aproveito cada refeição.”
Maleabilidade, eis a nova e inescapável regra do jogo. Em tempos difíceis, é natural que se busque algum conforto em boas lembranças do passado, berço da sensação de segurança. Os grandes traumas, do ponto de vista neurológico, afetam as chamadas áreas cinzentas do cérebro, responsáveis pela visão, audição, fala, emoções e memória. Como resultado do corte abrupto, como acontece agora com a pandemia, há uma divisão natural entre o que veio antes e o que virá depois — é percepção que pode ser compreendida pela psicologia, no divã, em sessões por videoconferência, sem dúvida, mas também por imagens bioquímicas, nos casos mais drásticos. Na procura pela compensação, por algo tranquilizador, os adultos fazem como as crianças e caçam nos vãos mais recônditos algum objeto transacional, ponte para o bem-estar: pode ser um filme, um livro, uma roupa, um prato de comida.
A nostalgia ajuda, serve como uma espécie de chupeta emocional, levando-nos ao convívio com uma realidade estressante. É como se fosse necessário dar uma olhadinha lá para trás para seguir em frente. Não por acaso, a recente proliferação de drive-ins em todo o mundo, inclusive no Brasil, foi recebida com dupla satisfação: por segurança, dado o distanciamento entre os carros, e pelo agradável aceno à vida como ela era no tempo de nossos pais e avós. “É como se enxergássemos a vida em câmera lenta para poder analisar bem antes de engatar os próximos passos”, afirma Ilana Pinsky, psicóloga clínica e pesquisadora visitante na Universidade da Cidade de Nova York.
No entanto, como há sempre um porém, a boia da nostalgia não resolve tudo, e pode ser incômoda. Para a grande maioria das pessoas, na maior parte dos lugares, a pandemia não reflete o drama e a morte na linha de frente, nos hospitais, mas o tédio e as dificuldades comezinhas do cotidiano doméstico. Havia o sonho de retomada da simplicidade dentro de casa, sem o exagero do consumo, sem a loucura do trânsito das metrópoles, uma vida menos agressiva ao ambiente. Sim, e é ambição que parece saltar das conversas entre pacientes e terapeutas (veja no quadro acima). Contudo, as pequenas tarefas do dia a dia, para prosseguir na metáfora bélica, são como uma guerra de guerrilha — aborrecida, decepcionante —, e não é fácil lidar com esse inimigo silencioso, devorador de humores.
A simples vontade de pôr os pés na rua, natural, vai colidir com o tal do novo normal, a expressão já comuníssima que ajuda a resumir o mundo como ficou e ficará. Nos restaurantes, haverá pouca gente nos salões, mesas afastadas, horários rigorosos e, surpresa!, em alguns endereços da Europa há bonecos que, confortável e elegantemente sentados diante dos pratos, colaboram para desanuviar o ambiente. Nas academias de ginástica brotam casulos de plástico para isolar as pessoas, em imagem que soa futurista mas tem os pés no presente de modo indelével, ao menos até que surja a tão sonhada vacina contra o vírus. Malhar é preciso e manter a saúde também. “Períodos de grandes rupturas têm caráter de reorientação, levam-nos a pensar no que realmente é prioridade”, diz Rodrigo Alencar, professor na pós-graduação de sociopsicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Vale o conselho que não para de ecoar e que os personagens ouvidos por VEJA, cujas histórias aparecem ao longo desta reportagem, evidenciam: mantenha a calma e siga em frente na trilha de uma outra vida, melhor, agradavelmente melhor.
Publicado em VEJA de 5 de agosto de 2020, edição nº 2698