A corrida começou assim que o agente causador de uma misteriosa e apavorante síndrome da imunodeficiência adquirida, a aids, foi desvelado, em 1983. Contra um vírus, batizado de HIV, nada melhor que se armar com uma vacina. Quarenta anos depois, com um rastro de 40 milhões de mortes desde o início da epidemia e ao menos 39 milhões de pessoas convivendo com a infecção pelo mundo atualmente, o sonho de um imunizante foi por água abaixo em dezembro de 2023, quando se anunciou a descontinuação dos estudos que representavam a última chance de chegar a uma fórmula eficaz nesta década. Sim, a vacina era segura, porém inapta a combater o vírus. A busca e a luta continuaram, com um pano de fundo de quatro décadas de tentativas e 250 testes clínicos fracassados com uma candidata a deter o HIV. Agora, felizmente, a história poderá mudar. Cinco pesquisas recém-publicadas pavimentam uma renovada rota de esperança até um imunizante com potencial de escrever o último capítulo na batalha contra a aids — a derradeira fronteira para superar uma epidemia que, desde os anos 1980, transformou a ciência e a sociedade.
A promessa está no ar e estampada em duas das mais prestigiadas revistas científicas do mundo. Na Cell, um estudo clínico demonstrou que uma vacina conseguiu gerar uma resposta de defesa em humanos de forma sustentada. Na Science, quatro investigações com animais inauguraram uma disruptiva estratégia de imunização. Todas elas têm algo em comum: procuram alavancar a produção dos chamados anticorpos amplamente neutralizantes. Contra um inimigo sofisticado, armas sofisticadas. Enquanto os anticorpos convencionais — munição do sistema imune para interceptar elementos estranhos — são suficientes para nos proteger de uma gripe ou da covid-19 com reforços vacinais a cada ano, com o HIV a coisa muda de figura. “Ele tem um relógio evolutivo incrivelmente acelerado, que bate 100 vezes mais rápido do que o do coronavírus e 100 000 vezes mais rápido que o nosso”, diz o virologista Paulo Eduardo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP). Isso significa que o vírus ostenta uma altíssima taxa de mutação e um verdadeiro enxame de cepas diferentes. Daí o desafio de criar soldados e armamentos hábeis para conter tantas variantes ao mesmo tempo. A solução é apelar aos anticorpos amplamente neutralizantes.
Não é tarefa fácil induzir o corpo a fabricá-los, mas os cientistas sabem que as pessoas infectadas desenvolvem naturalmente esse tipo de proteção. O problema é que isso só acontece tardiamente, após contrair o HIV, que, ao infectar as células de defesa, desorganiza a imunidade. O que essa nova geração de estudos busca é ajudar o organismo a deixar montado um esquadrão especial que, havendo um eventual contato com o vírus, estaria pronto para apagá-lo — um trunfo na prevenção. O segredo, finalmente dominado pelos pesquisadores, está em mirar essencialmente componentes do envelope que recobre o patógeno — a parte do vírus que menos muda de uma versão para outra —, o que oferece uma blindagem estendida. Trata-se de um complexo quebra-cabeça de laboratório. E o feito inédito de pesquisadores da Universidade Duke, nos Estados Unidos, foi justamente conseguir produzir os anticorpos barra-pesada com esse estratagema em gente como a gente — daí a publicação na Cell.
É evidente que há uma estrada pela frente até a exitosa prova de conceito render frutos em saúde pública. O ensaio envolveu um pequeno grupo de voluntários e há margem para melhoras. “Ainda não chegamos lá, mas agora o caminho a seguir está muito mais claro”, diz Barton Haynes, diretor do instituto da Duke responsável pela conquista. Nesse sentido, as investigações que acabam de ganhar as páginas da Science podem colaborar. Em uma parceria entre o Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e a Universidade Harvard, nos EUA, cientistas conseguiram estimular esses anticorpos em roedores e primatas por meio de uma técnica sem precedentes. Eles se valem primeiro de uma vacina para despertar os linfócitos B, as células que fabricam os anticorpos. Em seguida, aplicam uma série de reforços. Aí mora o pulo do gato: em vez de robustecer a imunização com os mesmos componentes da primeira picada, como se faz tradicionalmente, eles oferecem versões ligeiramente diferentes, cada vez mais parecidas com os elementos originais do vírus. Como os experimentos revelam, isso tende a gerar anticorpos mais potentes e espertos para captar a diversidade viral.
Os achados empolgam, em que pese o fato de a ciência poder levar anos até entregar vacinas efetivas à população. É preciso ter em mente, antes que se faça qualquer comparação, que a corrida contra a covid-19, mobilizada por um esforço global diante de uma pandemia em curso avassalador, constitui certa exceção à regra. E, ainda assim, só foi viabilizada por décadas de estudos. Faz parte do jogo, e o conhecimento gerado pela aids e sua interface com o sistema imune, desde os anos 1980, foi crítico para ganharmos diversas partidas contra as doenças infecciosas. “Apesar de diversos resultados negativos ao longo do tempo, eles foram essenciais para entender o que precisa ser mudado e o que é necessário para desencadear proteção”, diz o biomédico Igor de Andrade Santos, pesquisador do Instituto Pirbright, no Reino Unido. “Novos estudos como esses demonstram que existe uma gama de opções e que a ciência está perto de atingir o objetivo.”
Enquanto não chegamos lá, há que comemorar outros avanços — e não foram poucos. Quando anunciado ao mundo, o HIV logo foi encarado como sentença de morte. Ou, como entoaram os míopes fanáticos de então, uma punição divina contra a promiscuidade. Além de destruir células do sistema imune, predispondo o sujeito a males oportunistas, o HIV consegue se infiltrar no genoma humano, escondendo-se por anos, o que dificulta a cura. Mas a criação e o aperfeiçoamento dos remédios antirretrovirais representaram uma guinada espetacular. Hoje permitem que a expectativa de vida de alguém com o vírus — que no passado não superava dois anos — seja comparável à da população em geral.
Mesmo a palavra “cura”, tão cobiçada pelos pacientes e evitada pelos cautelosos experts, ganhou novos contornos com a evolução da medicina e o acesso ao tratamento — algo no qual o Brasil se tornou referência com o acolhimento e a oferta gratuita pelo SUS. Na realidade, algumas pessoas conseguiram se livrar da doença após transplantes de medula para tratar, também, um câncer. Mas essa abordagem, que promove uma depleção de todas as células imunológicas, é dispendiosa e arriscada, impossível de ser adotada em larga escala. A terapia convencional, no entanto, progrediu e tornou-se mais assertiva e com menos efeitos colaterais. “Hoje falamos em terapia supressiva, porque mais de 90% dos pacientes em tratamento não têm o vírus no sangue. Eles podem viver normalmente e não o transmitem mais”, afirma o infectologista Alexandre Naime Barbosa, coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI). Só na rede pública nacional há vinte antirretrovirais diferentes disponíveis — com uma nova alternativa para as formas mais resistentes incorporada na última semana.
O sucesso do controle viral coroa um empenho desmedido de cientistas, profissionais de saúde, pacientes e ativistas, que inclusive protestaram e enfrentaram o preconceito e o estigma do “soropositivo”. Graças a eles, a qualidade de vida de quem carrega o HIV melhorou e a transmissão da doença pôde ser mitigada. Se há alguns anos o paciente tinha de se entupir de pílulas todo dia para se cuidar, hoje boa parte deles toma apenas dois comprimidos para zerar a carga viral. É o fim da era do “coquetel”. Outro passo decisivo nessa história foi a implementação das estratégias de prevenção com medicamentos, as chamadas profilaxia pré-exposição (PrEP) e profilaxia pós-exposição (PEP), destinadas, respectivamente, a indivíduos em maior risco ou que tiveram eventual exposição ao vírus.
Essa combinação de táticas, por si só, seria suficiente para botar um ponto-final na infecção e em sua disseminação. Pessoas em tratamento deixam de transmitir o HIV, enquanto indivíduos em profilaxia têm a probabilidade de pegar o vírus através de relações sexuais reduzida em 99%. Apesar disso, a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu, neste mês, um alerta para a persistência do problema — o que só aquece a expectativa por uma vacina. O número de novos casos de HIV diminuiu menos do que se esperava entre 2020 e 2022 — de 1,5 milhão para 1,3 milhão em todo o mundo —, ao passo que outras infecções sexualmente transmissíveis seguem em ascensão. No Brasil, a situação não é diferente, muito embora o continente africano continue sendo o maior polo de desafios. “Nosso país despontou com um programa de vanguarda, oferecendo tratamento gratuito e universal e adotando a profilaxia com rapidez”, diz o sociólogo e especialista em saúde coletiva Alexandre Grangeiro, professor da USP. “Mas, nos últimos anos, houve um desfinanciamento das políticas e um afastamento entre os ministérios, ficando todo o trabalho a cargo da pasta da Saúde.”
As consequências se fazem notar: embora a mortalidade causada pelo vírus tenha reduzido em 25% na última década, o número de novos casos permanece estável e ainda afeta desigualmente populações negras e minorias. Há, entretanto, modelos a ser seguidos. Apesar de não destoar do programa nacional, a cidade de São Paulo, além de eliminar completamente a transmissão vertical de mãe para filho, conseguiu derrubar em 45% a taxa de novas infecções entre 2016 e 2022, reflexo de um plano consistente amparado na ampliação do acesso a exames e remédios. “Levar serviços de prevenção para espaços públicos e populações estigmatizadas é uma estratégia que tem se mostrado exitosa”, afirma Cristina Abbate, coordenadora de IST/Aids da Secretaria Municipal da Saúde paulistana.
Essa parece ser a melhor prescrição contra a enfermidade. Hoje, são poucos os que acreditam no cumprimento da meta da OMS de, até 2030, dar fim à epidemia de HIV. Só não seria por falta de conhecimento e tecnologia. Uma vacina aceleraria esse processo, sobretudo nas nações assoladas por desigualdades sociais, mas exemplos internacionais de sucesso, como os da Namíbia e da Austrália, provam que não se devem cruzar os braços até ela chegar. Pelo contrário, mostram que a adoção de programas de conscientização adequados às realidades locais e a democratização do diagnóstico, do tratamento e da profilaxia são capazes de achatar e manter sob controle as curvas da doença.
Não há justificativa para a inação, sob pena de comprometer um legado de vitórias da ciência, dos pacientes e da sociedade civil. Um dia, o inesquecível Freddie Mercury e o comissário de bordo conhecido erroneamente como paciente zero, Gaëtan Dugas, carregaram sozinhos o fardo da aids. Agora, vemos o ator americano Billy Porter e o cantor brasileiro Leandro Buenno falarem abertamente sobre o tema e mostrarem que é possível levar uma vida normal, apesar do vírus. Ao menos contra a desinformação e a discriminação já estamos (ou deveríamos estar) vacinados.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894