Um garoto não consegue se manter quieto na hora do jantar. Não dá bola aos apelos do pai para se comportar à mesa e, agitado, acaba caindo da cadeira, puxando a toalha e levando ao chão toda a refeição, com talheres e copos. “Phil Inquieto” é uma das mais célebres ilustrações do médico alemão Heinrich Hoffmann (1809-1894), criada em 1844 como um curioso presente para o seu filho. Revista séculos depois, tornou-se uma alegoria das pessoas com transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, o TDAH. Condição em alta nos consultórios, ela também ganhou fama por ser controlada com medicamentos capazes de gerar dependência — por vezes utilizados fora do contexto terapêutico por pessoas que buscam aperfeiçoar o desempenho mental. Mas o cenário do distúrbio tem tudo para mudar com a chegada do primeiro medicamento não estimulante e sem potencial viciante no Brasil. Trata-se da atomoxetina, comprimido de nome comercial Atentah, um reforço ao arsenal contra o TDAH que promete a pacientes e pais a vantagem de ter menos efeitos colaterais em comparação com as medicações tradicionais.
Um dos trunfos do fármaco, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é atuar especificamente numa área do cérebro chamada córtex pré-frontal. “É uma região que funciona como um maestro. Regula emoções, pensamentos e movimentos e termina de se desenvolver por volta dos 24 a 26 anos”, diz Guilherme Polanczyk, psiquiatra da infância e adolescência e professor da Faculdade de Medicina da USP. “No TDAH, é como se tivéssemos um maestro que não rege tão bem os mais diferentes músicos que compõem a orquestra.” Devido a esse descompasso, que tem origens genéticas e pode se manifestar em crianças, jovens e adultos, o indivíduo convive com desatenção, hiperatividade e impulsividade frequentemente.
Todas essas características dão as caras nos seres humanos em algum nível ou momento, sobretudo ao longo da infância ou da adolescência. Mas se tornam constantes e fogem do controle diante do TDAH. Isso significa que os sintomas têm impacto considerável no aprendizado, nas relações sociais e no desenvolvimento escolar e profissional de crianças e adultos. Estima-se que o quadro afete 5% dos mais jovens e 2,5% dos mais maduros mundo afora. Sim, é bastante gente! As estatísticas apontam que, entre os pequenos, 15% vão chegar aos 30 anos sem sinais do TDAH, que terão desaparecido naturalmente, e 70% continuarão a ter algum tipo de prejuízo decorrente do déficit de atenção ou da hiperatividade. É daí que vem a importância de um diagnóstico correto e do acompanhamento multidisciplinar, que pode envolver a prescrição de remédios.
O tratamento está consolidado com medicações conhecidas: psicoestimulantes como a Ritalina (metilfenidato) e o Venvanse (lisdexanfetamina). É a estratégia padrão ouro, aliada à psicoterapia e ao treinamento dos pais e responsáveis. Mas os especialistas acreditavam que o cardápio terapêutico estava defasado no Brasil. E é essa lacuna que a atomoxetina visa a suprir. “Está chegando ao país uma medicação que já existe há vinte anos, também tem excelente resposta e está associada a menor risco de se desenvolver ansiedade”, diz o psiquiatra Luis Augusto Rohde, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O pulo do gato é que a droga estimula o foco e a concentração sem interferir no sistema de recompensa cerebral — justamente a atuação dos psicoestimulantes que aumenta o risco de dependência e outras reações adversas. Essa abordagem mais seletiva, aliás, ganhou corpo nos Estados Unidos com a aprovação, no ano passado, de um novo membro da classe, a viloxazina (de nome comercial Qelbree) para adultos. Liberadas para crianças em 2021, as cápsulas foram anunciadas como a primeira medicação não estimulante para TDAH aprovada em duas décadas. Antes dela, a última novidade tinha sido justamente o aval para a atomoxetina, em 2002.
Mesmo não sendo o que os médicos chamam de primeira linha de tratamento, os medicamentos não estimulantes desembarcam em um momento oportuno no debate sobre TDAH. Nos últimos três anos, desde o início da pandemia, o transtorno entrou no radar da população a partir de publicações nas redes sociais de pessoas que compartilhavam suas rotinas de falta de foco, agitação e procrastinação. Picos de buscas passaram a ser registrados a partir de 2021 e houve a propagação de “autotestes”, sem validade médica. Em março deste ano, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos lançou um relatório mostrando um aumento superior a 10% nas prescrições de remédios para o distúrbio entre 2020 e 2021. Uma das hipóteses é que a crise de Covid-19 possa ter exacerbado sintomas em um cenário de acesso mais favorável ao diagnóstico graças à telemedicina. Do fim de 2022 até o momento, autoridades americanas investigam o desabastecimento de medicamentos para TDAH, um fenômeno que não corresponde, a rigor, com o aumento da prevalência da condição. Suspeita-se que a maior demanda tenha sido encabeçada pelo uso não médico de fármacos como o Venvanse, tomados por estudantes e executivos que querem ampliar a produtividade. E é aí que a droga desperta seu lado viciante.
O TDAH vive um boom de estudos, cada um deles agregando peças em um complexo quebra-cabeça. Hoje se conhecem mais de trinta genes ligados ao quadro e apura-se a influência de fatores como prematuridade e negligência na infância em sua erupção anos depois. Todo esse conhecimento, ao lado de serviços de saúde mental mais disponíveis, poderá aprimorar o diagnóstico precoce da condição, algo que impacta diretamente na administração dos sintomas. “E mesmo o tratamento precisa ser reavaliado periodicamente, porque as estratégias mudam com a evolução do paciente”, diz Polanczyk. Pelo menos nessa seara há novo recurso na praça.
Publicado em VEJA de 8 de setembro de 2023, edição nº 2858