Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Continua após publicidade

Não era mi-mi-mi: burnout é classificado pela OMS como doença ocupacional

Do ponto de vista prático, as empresas agora precisam estar atentas ao mal e podem ser responsabilizadas caso não ajudem a frear a fadiga no trabalho

Por André Sollitto Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h22 - Publicado em 14 jan 2022, 06h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • No início dos anos 1970, o psicanalista americano Herbert J. Freudenberger abriu uma clínica gratuita em Nova York para tratar pacientes pobres. Ele trabalhava de dez a doze horas por dia em seu consultório particular e depois ia para a segunda jornada. Raramente encerrava as atividades antes da meia-noite. Não demorou para perceber que o bonito projeto altruísta virara um estorvo. Os colegas que participavam da empreitada e seguiam a mesma toada urgentíssima estavam ficando cansados, rabugentos e sem perspectiva. O cinismo era a nova régua.

    E, então, Freudenberger diagnosticou a si mesmo e aos companheiros com o que chamou de “síndrome de burnout”, um estado de exaustão permanente provocado pelo trabalho. “Os esgotados têm dores de cabeça, problemas de estômago, dificuldade para dormir e falta de ar”, anotou. Era a primeira vez, na história da medicina, que as condições da rotina profissional associadas ao estresse indicavam um problema real de saúde. Cinco décadas depois da intuição de Freudenberger, o burnout — que há muito tempo ocupa corações e mentes — virou um problema oficialmente diagnosticável.

    arte burnout

    Desde 1º de janeiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica o burnout como uma doença ocupacional, um “estresse crônico de trabalho que não foi administrado com sucesso”. Aparece, na Classificação Internacional de Doenças, o CID, ao lado de males agora também mensuráveis como o gaming disorder, distúrbio provocado por excesso de tempo debruçado em jogos eletrônicos, e a resistência antimicrobiana, relacionada ao uso descontrolado de antibióticos. Do ponto de vista prático, as empresas agora precisam estar atentas ao mal e podem ser responsabilizadas caso não tenham programas que ajudem a frear a fadiga atrelada a exigências do cotidiano profissional. A grande novidade, reafirme-se, é o incômodo ter se transformado em ponto de atenção no batente, com implicações legais e trabalhistas.

    É mudança fundamental. O burnout sempre foi uma metáfora disfarçada de diagnóstico — to burn, em inglês, significa “queimar”. Se o esgotamento é universal e vem desde os primórdios, como condição humana, se sempre explodimos como seres humanos, talvez não fizesse sentido classificá-lo. Mas se é um problema recente, se começou quando foi batizado por Freudenberger, uma questão se impõe: qual é o rastilho de pólvora que atualmente existe e antes não havia? Um passeio estatístico ajuda na resposta. Antes de a Covid-19 se tornar a principal preocupação sanitária do planeta, o tema já exigia atenção especial. Dados de 2019 divulgados pela OMS mostravam que 300 milhões de pessoas sofriam de depressão e 260 milhões, de ansiedade. Juntos, os dois distúrbios custavam 1 trilhão de dólares por ano em perda de produtividade. “Há muita confusão entre o diagnóstico de burnout e o de depressão em decorrência da sobreposição de sintomas, mas o burnout está sempre relacionado ao trabalho”, diz Ana Maria Rossi, presidente do braço brasileiro da International Stress Management Association, que se dedica à pesquisa e ao tratamento do estresse. Medir o impacto da síndrome, no entanto, é uma tarefa complicada principalmente porque seus estudos ainda são recentes. Uma pesquisa feita pelo site americano de empregos FlexJobs ajuda a dar uma ideia do tamanho do dilema: 75% dos entrevistados passaram por experiências recentes de exaustão profissional em 2020.

    Continua após a publicidade
    ALÉM DO BÁSICO - Sala de descompressão: ambientes descolados, sozinhos, não resolvem -
    ALÉM DO BÁSICO – Sala de descompressão: ambientes descolados, sozinhos, não resolvem – (Wuermli/Camenzind Evolution/.)

    A pandemia, a onipresente pandemia, acrescentou uma camada de complexidade. E, nesse contexto, a parcela feminina da força de trabalho está sendo muito mais afetada. A pesquisa Women in the Workplace 2021, feita pela consultoria McKinsey e pela organização LeanIn, revela que 42% das mulheres sofrem com sintomas da síndrome de burnout — entre os homens, a taxa é de 35%. No Brasil, levantamento do Instituto FSB, feito a pedido da seguradora SulAmérica, mostra que a situação é semelhante: 62% das brasileiras disseram que a saúde mental piorou durante o isolamento social, ante 43% dos homens.

    O caso de Lia Ludwig, gerente na área de comunicação da MSD, multinacional do setor farmacêutico, ilustra um pouco da situação e mostra a relevância da atuação das empresas. No fim de 2020, Lia perdeu a sogra para a Covid-19. Em seguida, seu marido, também diagnosticado com a doença, foi internado. Para complicar ainda mais, o pai descobriu um câncer. Tudo isso enquanto ela cuidava dos filhos, que estavam estudando em casa, e das atividades profissionais. “Em uma reunião, comecei a choramingar. Enxuguei as lágrimas e disse a todos ali que estava tudo bem”, conta ela. Mas os colegas viram que não estava tudo bem, e agiram rápido. Ela foi colocada em licença médica, mesmo querendo continuar trabalhando, e depois saiu de férias. Nesse período, passou por consultas com especialistas em saúde mental e recebeu a orientação necessária. Foi salva pelo gongo do diagnóstico de burnout. “A experiência quebrou meu preconceito e me fez ver que existem momentos em que é preciso cuidar, e outros em que é preciso ser cuidado”, conta Lia.

    Continua após a publicidade
    CUIDADOS - Ginástica laboral na Inglaterra em 1930: preocupação antiga -
    CUIDADOS - Ginástica laboral na Inglaterra em 1930: preocupação antiga – (Imagno/Austrian Archives/Getty Images)

    Essa compreensão não vem com naturalidade. Ainda há muito preconceito em falar de saúde mental sem cair na armadilha de achar que esconder os sintomas e se manter resiliente é demonstração de força e comprometimento com a companhia. A cultura organizacional das empresas também reforça essa postura. É comum ver funcionários de todos os níveis hierárquicos suportando cargas horárias extremas e acúmulo de funções para causar boa impressão — eis uma das características dos tempos atuais, tão premidos, tão exigentes.

    Como mudar esse cenário? A solução começa pela capacitação das lideranças para entender o problema, identificar quando o colaborador precisa de ajuda e apontar o caminho correto. “As empresas fogem com medo de trazer o tema à tona”, diz Raquel Dilguerian Conceição, head de Saúde Populacional e Corporativa do Hospital Israelita Albert Einstein. “O assunto precisa ser trazido à tona baseado em evidências, e assim deixa de ser uma fofoca de corredor”. A partir da experiência do programa de saúde mental implantado na instituição antes ainda de a pandemia começar, Raquel e seu grupo de trabalho criaram um programa aplicável em empresas. O modelo contempla o diagnóstico dessas companhias, cursos de formação, desenvolvimento de indicadores para entender o nível de maturidade da discussão sobre o tema no ambiente corporativo e a capacitação de profissionais de saúde. Em menos de quatro meses desde o lançamento do programa, Conceição já estava trabalhando com doze clientes.

    Continua após a publicidade

    arte burnout

    O fundamental, no avesso do esgotamento, é criar uma estratégia de longo prazo que instale a saúde mental como pilar. Não se trata de montar salas de descompressão com pufes coloridos, de oferecer consoles de videogame e mesas de pingue-pongue ou de instalar máquinas automáticas de comida. Esse tipo de benefício ficou popular entre as empresas de tecnologia do Vale do Silício e chegou ao Brasil com tudo. Mal não faz, evidentemente, e é louvável que executivos pensem no conforto de suas equipes, mas está longe de ser a solução. “Sabemos que é difícil mudar velhos hábitos, mas vemos o futuro com otimismo”, diz Rui Brandão, fundador e CEO da Zenklub. A empresa nasceu em 2016 como uma plataforma digital para conectar pessoas e psicólogos, e hoje oferece pacotes para o mundo corporativo. Segundo a startup, as consultas on-line cresceram 151% no 1º semestre de 2021 ante o mesmo período de 2020, saltando para 50 000 sessões por mês. As consultas citando a expressão burnout tiveram um aumento de 397%. “Alguns de nossos clientes já têm maturidade com o problema, outros ainda dão os primeiros passos”, diz Brandão.

    É ciclo de aprendizado natural. Desde a Revolução Industrial do século XVIII, em que se passou a viver mais em fábricas do que em casa, as empresas desenvolveram mecanismos para atender às necessidades dos trabalhadores, de horários de descanso e alimentação a sessões de ginástica laboral, que no início eram uma liberalidade e com o tempo viraram lei em boa parte dos países. Nem sempre, contudo, as adaptações acontecem na velocidade necessária, é verdade. Invariavelmente, precisam de um empurrão — e a novidade apresentada pela OMS na virada do ano, ao classificar a síndrome de burnout, tem imensa força. Convém, no entanto, não transferir toda a culpa ao ambiente corporativo. Reconhecer os próprios limites e saber quando parar (às vezes, é preciso) é decisivo.

    Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2022, edição nº 2772

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Semana Black Friday

    A melhor notícia da Black Friday

    BLACK
    FRIDAY

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de 5,99/mês*

    ou
    BLACK
    FRIDAY
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

    a partir de 35,60/mês

    ou

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.