‘Magreza farmacológica’: USP mapeia riscos e lacunas do uso estético das canetas para obesidade
Artigo mostra como esses medicamentos viraram símbolo social, ampliando pressão estética e controle corporal, e defende realização de pesquisa multinacional
As canetas à base de agonistas de GLP-1 — como semaglutida e tirzepatida (os populares Ozempic e Mounjaro) — já são reconhecidas por mudar o tratamento da obesidade e do diabetes tipo 2. Mas, aos poucos, elas também avançam para um território pouco recomendado: o de pessoas sem esses diagnósticos que recorrem aos medicamentos, originais ou manipulados, para moldar o corpo, inaugurando uma era de “magreza farmacológica”.
Essa tendência, facilmente observada nas redes sociais, foi analisada por pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com equipes dos Estados Unidos, Japão e Dinamarca, e publicada na revista científica Obesity.
Uma das principais considerações dos especialistas é que esse segue sendo um “território inexplorado”, sem dados compilados que permitam dizer com clareza até mesmo ao básico: quem são os usuários fora das indicações? Como acessam as medicações — por meio de prescrições, clínicas estéticas, farmácias de manipulação, mercado informal? Quais são os principais riscos e efeitos colaterais nessa população, que não é o público-alvo dos estudos clínicos? E como tudo isso afeta a saúde mental, a relação com o corpo e a própria identidade dessas pessoas?
“O uso fora das indicações de GLP-1 não é simplesmente um desvio das normas clínicas; é um fenômeno emergente que reflete mudanças globais nas políticas culturais do corpo”, escrevem os autores. “Revela como a busca pela magreza foi medicalizada, moralizada e mercantilizada de maneiras que exigem uma análise rigorosa e interdisciplinar.”
O alerta aparece num momento em que, no Brasil, apreensões de versões manipuladas irregulares se tornam mais frequentes. Também crescem as parcerias entre clínicas e farmácias de manipulação que vendem preparações em larga escala, fora dos padrões exigidos pela indústria farmacêutica. E, no ambiente digital, proliferam anúncios que prometem “perdas de peso rápidas para o carnaval” ou “para o réveillon”, reforçando a ideia de que os medicamentos podem servir de atalhos estéticos.
“Esse conjunto complexo de escolhas e comportamentos por parte dos consumidores acaba criando uma “economia moral” do corpo — ou seja, certos tipos de corpos funcionam como passaporte para garantir legitimidade social, elevar o status e, de modo geral, construir uma autoimagem aspiracional […] Compreender esse fenômeno exige ir além da eficácia biomédica para investigar as implicações psicológicas, comportamentais e sociopolíticas da magreza farmacológica”, ressaltam os pesquisadores.
Controle e valor social
Segundo o artigo, celebridades, influenciadores e a circulação massiva nas redes sociais ampliam o apelo desses medicamentos e os transformam em símbolos de controle corporal e até de valor social.
“Nas redes, vemos narrativas muito sedutoras que apresentam esses medicamentos como soluções simples e rápidas, sem mencionar riscos ou limitações. Tudo isso pressiona as pessoas a recorrerem a estratégias farmacológicas mesmo sem necessidade clínica, apenas para atingir um ideal estético amplificado digitalmente”, aponta a nutricionista Fernanda Scagliusi, primeira autora do estudo.
Os pesquisadores também chamam atenção para um detalhe técnico que, segundo suas análises, acaba ampliando o alcance desses fármacos: as limitações do índice de massa corporal (IMC). Por ser um critério impreciso, argumentam, o IMC pode “expandir a população-alvo”, incluindo pessoas que não foram contempladas nos estudos clínicos originais.
O texto destaca ainda que a perda de peso deixou de ser apenas um desfecho biomédico e se tornou uma espécie de performance social. “Nessa economia moral, perder peso sinaliza comprometimento, disciplina e conformidade com as normas corporais e de saúde dominantes. Por outro lado, não conseguir perder peso (ou optar por não tentar) é enquadrado como uma falha de responsabilidade”, escrevem os autores.
Nesse cenário, eles questionam se o uso fora das indicações deve ser visto como um simples “abuso” ou como uma adaptação “racional” à vigilância constante sobre o corpo e ao estigma que acompanha qualquer desvio dos padrões de peso.
Mapeando as lacunas
Quando observam esse uso crescente entre pessoas sem indicação clínica, os pesquisadores mostram como quase tudo ainda está por responder.
“Sabemos que esses medicamentos são eficazes para pessoas com obesidade, mas ainda faltam estudos que avaliem segurança, impacto psicológico e efeitos de longo prazo em indivíduos sem indicação clínica. Isso torna o uso com fins estéticos especialmente preocupante”, afirma Bruno Gualano, presidente do Centro de Medicina do Estilo de Vida da FMUSP e um dos autores do artigo.
Os pesquisadores organizam essas incertezas em alguns eixos que podem servir para orientar futuros estudos:
- Relação com comida e apetite
Questões ainda sem resposta incluem como a supressão da fome altera a relação emocional das pessoas com a comida, se elas passam a pensar mais ou menos em alimentação e se surgem sentimentos de angústia, alívio ou perda de controle.
- Efeitos colaterais e sua interpretação
Ainda não há dados sobre quais efeitos físicos e emocionais são mais frequentes nesses usuários, nem sobre como eles lidam com esses sintomas. Uma das dúvidas é se alguns efeitos desagradáveis acabam sendo vistos como “parte do processo” ou até como sinal de eficácia.
- Imagem corporal e autoestima
Os autores ressaltam que não se sabe se a perda de peso leva a maior aceitação corporal ou se apenas eleva o nível de exigência do que é considerado “suficiente”. Também faltam estudos que investiguem possíveis conexões com procedimentos estéticos adicionais ou outros métodos de modificação corporal.
- Comportamentos alimentares
Faltam dados sobre mudanças no padrão alimentar, como episódios de compulsão ou restrição, culpa após comer, aversões alimentares ou mesmo desejo de “não precisar se alimentar”.
- Impacto psicológico
Pesquisadores também pedem atenção para possíveis sinais de ansiedade, depressão ou transtornos alimentares que possam coincidir com o uso do medicamento.
- Acesso e medicalização
Outra lacuna importante é o próprio caminho até o medicamento: quem prescreve, quem incentiva, quanto o custo influencia e como operam as redes paralelas de acesso. Há indícios desses fluxos, mas ainda faltam dados sólidos que permitam enxergar esse percurso com clareza.
- Dependência emocional e interrupção
Não há clareza sobre o grau de apego emocional ao medicamento, nem sobre como as pessoas lidam com o medo de reganhar peso. Também não se sabe o que acontece com quem interrompe o uso e quais são os motivos mais comuns para essa decisão.
- Influência das redes sociais
Embora seja evidente que a cultura digital impulsiona a demanda, faltam dados concretos sobre o peso dessa influência e sobre como as narrativas online moldam a percepção de risco, sucesso e identidade.
- Moralidade do emagrecimento
Os pesquisadores questionam como os usuários hierarquizam diferentes métodos de perda de peso e de que forma se sentem julgados — ou legitimados — ao recorrer a um medicamento que, oficialmente, não foi feito para eles.
- Identidade e significado
Por fim, ainda não se sabe como essas pessoas interpretam a própria decisão: se veem como pacientes, consumidores, transgressores ou apenas alguém “fazendo o que todo mundo faz”? Também não existe pesquisa sobre como elas explicariam essa escolha a outras pessoas.
Pesquisa coordenada
Para os autores, entender esse fenômeno depende de uma pesquisa multinacional coordenada, capaz de captar o que motiva as pessoas, como cada sociedade enxerga o corpo e quais desigualdades influenciam o uso desses medicamentos.
“É uma tendência mundial, mas não existe uma explicação única para ela. Cada país oferece pistas diferentes sobre como cultura, economia e saúde se entrelaçam nesse novo uso das canetas emagrecedoras”, diz Scagliusi.
A equipe, formada por pesquisadores do Brasil, Estados Unidos, Japão e Dinamarca, já identifica alguns padrões:
- No Brasil: medicamentos funcionam principalmente como instrumentos para lidar com padrões de beleza
- Nos Estados Unidos: o uso é lido como parte de uma lógica de “autodisciplina neoliberal”. Em outras palavras, a crença de que cada indivíduo é totalmente responsável por “controlar” o próprio corpo, investindo tempo, dinheiro e esforço para atingir a forma física considerada correta.
- No Japão: os autores falam em vigilância em saúde pública e biocidadania. Ou seja, existe uma forte pressão cultural para que cada pessoa mantenha determinados padrões de saúde e peso, como se fosse um dever cívico.
- Na Dinamarca: o uso desses medicamentos aparece como consequência de uma cultura biomédica muito regulada, na qual há grande confiança no sistema de saúde e nas recomendações oficiais. Assim, as pessoas tendem a seguir mais de perto o que é prescrito ou orientado por instituições.
Os pesquisadores ressaltam que também é importante incorporar uma perspectiva interseccional. Isto é, levar em conta como fatores como gênero, raça, idade, classe social e por aí vai.
“Sem isso, corre-se o risco de reduzir quem usa os medicamentos fora das indicações a rótulos simplistas como ‘vaidosos’, ‘mal informados’ ou ‘trapaceiros’, ignorando pressões sociais e estruturais que tornam a “magreza medicamentosa” não apenas desejada, mas em muitos casos vista como necessária”, concluem os autores do artigo.
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