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“Foi angustiante vê-la sumir”, diz Marcelo Rubens Paiva sobre a mãe

Escritor fala da dor de saber que ela, sempre tão combativa, sofria de Alzheimer

Por Amanda Péchy Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 2 set 2024, 18h52 - Publicado em 31 ago 2024, 08h00
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  • Como escritor, tenho o hábito de revisitar o passado. Por toda a história de meu pai, Rubens, sequestrado e assassinado na ditadura militar, vejo a memória como um bem precioso. Minha mãe, Eunice (1932-2018), era sua zelosa guardiã. Imagine o baque que foi saber, duas décadas atrás, que ela sofria de Alzheimer, aos 72 anos. Além da dor diante de uma doença perversa, temi que suas descobertas sobre a tirania do AI-5, obtidas a duras penas, pouco a pouco se apagassem. Foi para garantir que isso nunca acontecesse que escrevi um livro sobre sua vida, Ainda Estou Aqui. Até hoje, acho que ela teria feito melhor — sempre foi excelente narradora —, mas senti a responsabilidade de pôr tudo no papel após os primeiros indícios de esquecimento. Como sempre quis dar luz à sua trajetória, fiquei contente quando o diretor Walter Salles me procurou para transformar a obra em um filme, que estreia no Festival de Veneza, em setembro. Somos amigos de infância, e ele conheceu bem minha mãe, inclusive depois do Alzheimer. O pai de Walter, ministro da Fazenda de João Goulart, também foi perseguido e partiu para o exílio.

    O período entre o diagnóstico e a morte de alguém com Alzheimer é chamado de “o longo adeus”. Os sintomas começam, e a gente nem desconfia do desfecho. “É normal, coisa da idade”, pensava. Mas aí, com o tempo, vêm os degraus da doença, um atrás do outro. Os sentidos se deterioram, assim como a capacidade de locomoção, de reconhecer as pessoas, de se comunicar. O primeiro alerta foi quando minha mãe, administradora das finanças dos filhos, passou a ter dificuldades para fazer contas simples. Em seguida, ler o jornal virou um desafio. Houve uma vez em que ela cismou que a televisão estava quebrada e saiu para comprar uma nova. Logo esqueceu o que havia feito, voltou à loja e levou mais uma. No fim, ficou com três aparelhos. Justo ela, que abominava TV e limitava as horas em que eu e minhas quatro irmãs ficávamos na frente da tela. Seu negócio eram os livros.

    Ver minha mãe sumindo foi angustiante. Ela era o núcleo familiar, havia cuidado a vida inteira dos filhos. De repente, os papéis se inverteram. Quando a doença se agravou, organizamos sua rotina, um verdadeiro furacão de tarefas — entre finanças, supermercado, cuidadores, remédios. Marcamos uma intervenção judicial e me tornei, oficialmente, responsável por ela. Os tempos que se seguiram foram agridoces. Por um lado, a família inteira, incluindo aí tias, irmãs e sobrinhos, retomou o hábito de se reunir para viver com Dona Eunice seus últimos bons momentos, que foram vários. Teve uma época em que eu, minha esposa e nossos dois filhos, ainda bebês, nos mudamos para a casa dela. Costumávamos passar as manhãs ouvindo jazz e jogando conversa fora. Por outro lado, assistir à figura mais forte que já conheci ficar tão vulnerável era desnorteante, de uma tristeza profunda.

    As pessoas que se vão normalmente são enaltecidas, mas Eunice, minha mãe, foi mesmo uma guerreira. Seu nome virou sinônimo de resistência. Ela era apaixonada por meu pai e, sofrendo com a viuvez aos 40 anos e tendo sido presa, manteve os pés no chão. Em sua luta, nunca perdeu a doçura nem deixou que nada atrapalhasse a relação com os filhos. Ao contrário: isso nos aproximou. Quando sofri o acidente que me deixou paraplégico, aos 20 anos, foi ela quem me salvou, alimentando minha vontade de continuar a viver. Carrego sua sabedoria e postura como exemplos. No dia em que Fernando Henrique Cardoso assinou a lei de reconhecimento dos desaparecidos da ditadura, ela abraçou um general. Era seu jeito — procurava o acordo, o meio-termo. Aliás, isso anda em falta, com tanta polarização. Mais do que nunca, se faz necessário mergulhar na memória de Eunice. Ela morreu há seis anos, e a saudade ainda machuca. Mas, ao cutucar o passado, renovo minhas esperanças no que está por vir.

    Marcelo Rubens Paiva em depoimento a Amanda Péchy

    Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2024, edição nº 2908

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