A discriminação racial contra os negros mata de várias formas. A mais comum é sua manifestação por meio da violência, que atinge em maior grau essa população no mundo todo. Recentemente, contudo, a medicina vem trazendo à luz outra consequência nefasta, mostrando de que maneira o racismo contribui para adoecer e elevar as taxas de mortalidade entre esses indivíduos. É uma realidade dramática. Apenas alguns exemplos: no Reino Unido, mulheres negras têm quatro vezes mais probabilidade de morrer no parto do que as brancas. No Brasil, o risco de um negro apresentar episódios de depressão é praticamente o dobro do manifestado por alguém de pele alva.
O assunto ganha projeção conforme crescem os levantamentos apontando discrepâncias semelhantes ou maiores envolvendo outras enfermidades e atrai a mobilização de relevantes instituições mundiais. A mais recente foi protagonizada por pesquisadores internacionais que publicaram, em dezembro, quatro artigos no periódico The Lancet apresentando diferenças gritantes de indicadores de saúde entre brancos e negros. Meses antes, foi a vez de a Associação Americana do Coração colocar o tema na mesa ao atualizar a lista dos fatores de risco para doenças cardiovasculares. A menção ao racismo entrou no documento pela primeira vez pelo peso que ele desempenha no aparecimento ou agravamento do estresse e da depressão, duas condições associadas ao aumento de risco para infarto e acidente vascular cerebral.
O gatilho para que o debate ganhasse urgência foram os números extraídos da pandemia de Covid-19. No Brasil, por exemplo, um recorte feito pela PUC do Rio de Janeiro mostrou que a infecção pelo novo coronavírus matou 55% dos negros contaminados em 2020. Entre os brancos, o índice foi de 38%. No mundo, o risco de morte foi de duas a quatro vezes maior para os não brancos. O motivo por trás de diferenças assim é o mesmo responsável por toda a gama de injustiças às quais os negros estão historicamente submetidos. “A causa de tamanha distinção na forma como negros e brancos são tratados nos sistemas de saúde é o racismo estrutural e interpessoal”, afirmou a VEJA Delan Devakumar, da Universidade College London, autor principal dos textos divulgados na revista The Lancet.
Na prática, isso se traduz em estragos de amplitudes às vezes nem sequer notadas. Como explicar que profissionais em formação — não apenas médicos, mas todos os envolvidos no cuidado de pacientes — raramente são informados sobre predisposições da população negra a determinadas doenças, como o câncer de próstata ou a hipertensão? Só isso faria diferença na medida em que obrigaria um olhar ainda mais atento durante o acompanhamento dessas pessoas especialmente em países como o Brasil, onde mais da metade da população é negra. Outros danos são bem mais evidentes. Os mais frequentes são a negligência no atendimento por conta da cor da pele e os obstáculos no acesso aos serviços, seja por ausência ou insuficiência de unidades nas áreas onde são maioria ou incapacidade financeira de bancar assistência à saúde privada.
O resultado da engrenagem é vergonhoso e se reflete no controle mais precário de todas as enfermidades. “O diagnóstico em estágio avançado do câncer de colo de útero é mais frequente entre as negras e há menor sobrevida quando comparada à das brancas”, diz a oncologista Clarissa Mathias, do Grupo Oncoclínicas. Recentemente, o serviço realizou um painel sobre diversidade no 10º Simpósio Internacional Oncoclínicas e Dana-Farber Cancer Institute, centro americano reconhecido pela excelência no combate à doença, durante o qual a iniquidade no atendimento de negros foi um dos destaques. O problema não para aí. No caso do câncer — e de diversas outras enfermidades —, essa população não costuma integrar os estudos que validam a eficácia de medicamentos. “Apenas de 3% a 5 % dos pacientes incluídos em pesquisas de drogas oncológicas são pretos. Se não estão representados, não há garantias de que o remédio será efetivo neles”, afirma a oncologista Abna Vieira, da Oncoclínicas.
Há muito que avançar em toda a cadeia de atendimento para que as distorções sejam solucionadas. É de comemorar, porém, o fato de que, pela primeira vez, a questão ganha a atenção que merece. Mais do que isso, é alentador saber que mudanças estão a caminho, mesmo que sejam ainda incipientes. Algumas delas começaram a ser divulgadas neste mês pela revista científica Nature. A publicação, uma das mais importantes do mundo, iniciou a divulgação de artigos sobre iniciativas para reduzir o racismo na saúde e trouxe no primeiro dos textos o trabalho da ginecologista Kecia Gaither. A médica é criadora de um programa com foco no rastreamento de enfermidades cardiovasculares em negras com vistas à redução da mortalidade materna adotado no NYC Health + Hospitals/Lincoln, em Nova York, desde 2019. O efeito, dessa vez positivo, já pode ser observado. “Houve redução acentuada na incidência de mortes em comparação com o que vi em 2017”, escreveu Kecia. Que venham outras iniciativas do gênero.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823