Foi sempre uma coisa ou outra, sem concessões — a alma ou o corpo. Durante muito mais tempo do que se deveria, a relevância para o ser humano de se movimentar um pouquinho que seja foi relegada ao fundo das prioridades. O bom mesmo era pensar, cuidar da cabeça, estar psicologicamente bem. Mas então, em meados do século XX, estudos mostraram que o exercício físico é fundamental. Nos anos 1940, um revolucionário trabalho de um médico inglês com cobradores de ônibus demonstrou que a ocorrência cada vez maior de problemas cardíacos estava ligada muito mais ao sedentarismo do que à idade ou ao estresse crônico. E então o mundo percebeu que não poderia ficar parado — e dá-lhe abandonar os fundamentais cuidados com a cuca.
Mas como a roda não para de girar, em eterno vaivém, por mais de uma vez foram dadas ordens contrárias, isso ou aquilo. De um lado, os fervorosos defensores do chamado mindfulness, a técnica para acalmar os pensamentos e trabalhar a atenção plena. Do outro, os amantes dos exercícios físicos e toda a prazerosa cascata hormonal que eles desencadeiam. Aqui e ali algumas vozes apontaram o caminho do bom senso, mas o tempo tratou de calá-las. Thomas Jefferson (1743-1826), o terceiro presidente dos Estados Unidos, um pensador de escol, intuiu que havia algo errado e disse uma frase que seria celebrada: “Não menos de duas horas por dia devem ser devotadas ao exercício, e levando o clima em pouca consideração. Se o corpo for fraco, a mente não será forte”.
A polarização incessável virou mau hábito, um labirinto sem saída, de portas fechadas e donos da verdade. Seria preciso algum freio de arrumação, o necessário equilíbrio para pôr as duas frentes na balança, sem privilégios, em igualdade de condições. Parece, enfim, ter chegado a hora. Um robusto trabalho da Universidade de Bath, na Inglaterra, revela que costurar os dois aspectos — a cabeça e o organismo — é o que nos faz viver mais e melhor. Soa simples, quase banal, talvez seja, mas eis aí uma conclusão que merece ser celebrada. Os estudiosos mergulharam em mais de 7 500 referências científicas sobre o tema. Buscaram os prós e contras de cada vertente e do combo extraíram um enredo — uma postura ajuda a outra, simples assim. “Ficar mais atento, com a mente alerta, ajuda a treinar as forças psicológicas que precisamos para praticar exercícios corporais”, disse a VEJA Masha Remskar, cientista comportamental de Bath, uma das responsáveis pelo pioneiro levantamento. “O mindfulness e o fitness se complementam incrivelmente bem, multiplicando os benefícios para a saúde mental.”
Os dados existentes comprovam as respostas de cada linha, isoladamente. A movimentação física é alimento para o ânimo, o bem-estar fundamental para tocar a vida. O zelo mental é atalho para a satisfação no dia a dia.
A junção das duas pontas — e adeus polarização — tem extraordinário poder multiplicador. É o que revela a mineração da vasta pesquisa agora divulgada e que muitos especialistas recomendam com veemência. Ter a mente calma ajuda a manter o ritmo nas academias e ruas. Ter o corpo forte é apoio para bons pensamentos, e eis o ciclo positivo estabelecido com pompa. “Uma das formas de não deixar a mente à deriva é manter o corpo em movimento”, resume Marcelo Demarzo, coordenador do Centro Mente Aberta, da Unifesp, que atua com mindfulness.
Tudo resolvido? Não. As evidências ajudam a abrir avenidas e a demolir os lugares-comuns. Os xiitas da ginástica e os fanáticos pela reflexão vão naturalmente perder espaço, mas as dificuldades do cotidiano da vida moderna oferecem obstáculos, muitos intransponíveis. Como, por exemplo, ter força para abandonar o smartphone e as redes sociais? Como associar o personal trainer com o terapeuta de consultório, com tempo curto e dinheiro escasso? Não por acaso, nas crises econômicas — ou em momentos de espanto da civilização, como na pandemia de Covid-19 — as duas práticas costumam ser abandonadas, por supérfluas, e vive-se ao Deus dará. Mas cabe estar sempre atento ao conselho fundamental: é vital cuidar de tudo. “A saúde mental deficiente é um dos problemas mais comuns e onerosos de nosso tempo”, diz Masha Remskar, da Universidade de Bath. “Zelar simultaneamente pelo que vai na mente e o que o organismo pede é crucial para as estratégias dos serviços públicos de saúde.” Um estudo da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais mostrou que, no Brasil, os transtornos mentais levam à perda de 4,7% do PIB todos os anos, com menor produtividade e redução de postos de trabalho.
Vale, portanto, como resolução para o ano que mal começou, a vigilância permanente. Os aplicativos recentemente lançados para acalmar têm utilidade. Uma caminhada em volta do quarteirão, idem. O fundamental é saber que não são excludentes. É o que intuía, com delicadeza, o compositor Walter Franco (1945-2019) em uma de suas canções, de 1978: “Tudo é uma questão de manter / a mente quieta / a espinha ereta / e o coração tranquilo”. Boa ideia.
Publicado em VEJA de 19 de janeiro de 2024, edição nº 2876