Nascido de um famoso comercial de televisão de biscoitos dos anos 1980, o dilema do Tostines se resumia à seguinte e conhecidíssima indagação: “Vende mais porque é fresquinho ou é fresquinho porque vende mais?”. Transfira-se, com alguma liberdade de raciocínio, a indagação para o mundo das redes sociais: por que tantos youtubers têm ansiedade e depressão ou, ao avesso, por que tantos indivíduos que sofrem de ansiedade e depressão se tornam youtubers? Não há uma resposta definitiva, é impossível assegurar o que é causa, o que é efeito, mas há algumas hipóteses. O sujeito que vive pendurado na web, falando de si e de seu mundo à procura de curtidas e visualizações, acaba por entrar numa angustiante roda-viva de querer e precisar de mais e mais, atalho para desordens comportamentais. A pessoa deprimida no universo analógico muitas vezes usa as janelas digitais para pedir socorro, para ter algum contato, para sair do fundo do poço psicológico.
Como a dúvida sempre permanecerá, um bom modo de tentar desenhar a depressão na era da internet é entender o que se passa na cabeça dos grandes campeões de cliques — e poucos personagens são mais adequados a essa investigação do que o piauiense Whindersson Nunes, ex-ajudante de garçom que, em 2013, pousou no YouTube para compartilhar gravações engraçadas feitas dentro do próprio quarto e, debochado, virou fenômeno. Seu canal, que registra 36 milhões de inscritos e 2,9 bilhões de acessos, está entre os maiores do Brasil. Ele chegou a fazer vinte shows por mês, tem programa no Multishow, virou estrela de cinema — e alcançou faturamento anual de pelo menos 35 milhões de reais.
É um superstar de nosso tempo, incapaz de ser enquadrado em qualquer um dos escaninhos do passado (não é propriamente um humorista, não é exatamente um ator). Cresceu tanto, mas tanto, que explodiu — teve o que no universo empresarial é chamado de burnout, a palavra em inglês que designa o esgotamento profissional de caráter psíquico. Comoveu seus fãs ao admitir a depressão em uma de suas postagens, e depois se recolheu. Falou muito pouco ou quase nada do assunto. A VEJA, ele revelou com exclusividade o que de fato aconteceu (leia a entrevista). “Será que eu fiquei famoso para morrer como os artistas que partem aos 20 e tantos anos?”, indaga Whindersson. Ele assegura não ser viciado em smartphone — “Fico numa boa” —, mas essa é uma postura improvável, uma contradição em termos, para quem vive de se expor — o que no YouTube significa estar quase sempre plugado, 24 horas por dia. Outros nomes de peso desse time, como Felipe Neto (33 milhões de fãs no YouTube e 9 milhões no Twitter) e Kéfera Buchmann (11 milhões de inscritos em seu canal no YouTube), já revelaram ter perdido o prumo. Ele admitiu medicar-se diariamente, com acompanhamento psicológico. Ela disse, em vídeo, e não poderia ser de outra maneira: “Se você sofre de depressão (…) tenho uma coisa para te falar. Não pense no suicídio como uma opção (…) você não quer acabar com sua vida, quer que a dor pare (…) depressão é uma doença muito séria. Não é doença de rico, de quem não tem nada para fazer da vida, ou coisa de desocupado”.
Afinal de contas, os problemas de Whindersson, Felipe e Kéfera, e de tantos outros youtubers, no Brasil e no mundo, são o retrato de uma nova modalidade de disfunção, que poderia ser chamada de depressão digital? E, se ela realmente existe, no que difere da depressão desplugada, do tempo de nossos pais? Ressalve-se, como premissa, que, do ponto de vista dos sintomas, a depressão dos tempos atuais e a de antes, quando não havia o smartphone, são semelhantes. Contudo, a influência das novíssimas tecnologias soa incontestável. “Ninguém está reinventando a depressão, mas a utilização excessiva das redes sociais e smartphones pode estar na base dos gatilhos depressivos”, diz o psicólogo Cristiano Nabuco, coordenador do grupo de dependências tecnológicas do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo. “Ou seja, a internet acaba alavancando uma eventual predisposição genética que o indivíduo já carrega e que, sem esse uso exagerado, talvez não apresentasse.”
A depressão é um transtorno de múltiplos fatores e se caracteriza por tristeza profunda e forte sentimento de desesperança. Suas origens biológicas e suas causas ainda não foram totalmente desvendadas pela ciência. Fatores genéticos, ambientais e psicológicos a tornam ainda mais desafiadora. A história familiar também é decisiva — alguém cujo pai ou mãe seja vítima do problema tem um risco 40% maior de desenvolver depressão. Pelo menos três dezenas de genes já foram identificados como uma chave de risco para a aguda aflição.
As pessoas propensas à depressão demonstram pouca habilidade para regular as emoções, têm resiliência frágil e, invariavelmente, tendem a levar a autoestima à lona — nesse aspecto, as redes sociais são o ambiente propício para embaralhar a saúde mental. O uso à noite, na hora de dormir, prejudica o sono; as notificações incessantes afetam a concentração; os likes (e que sorte não haver dislikes) aceleram a montanha-russa emocional; e a busca pela selfie perfeita termina como uma desnecessária briga de egos. Além disso, o ambiente virtual é habitado pelos haters, que adoram odiar, escrevem e falam o que pensam, atacam a vida dos outros sem medo de repercussões, incentivando o cyberbullying. Enfim, a vida digital mudou completamente a forma como as pessoas se comunicam, interagem e trabalham. Estudos recentes mostram que elas checam seu celular oitenta vezes por dia. Os brasileiros são os mais assíduos. Passam mais de nove horas diárias ligadíssimos, período inferior apenas ao dos filipinos e bem superior à média global, de pouco mais de seis horas no ar. O limite, considerado saudável, dentro do equilíbrio, é restrito a três horas diárias.
Do ponto de vista científico, as respostas sobre a influência que o uso massivo das redes sociais tem na saúde mental são embrionárias, mas interessantes demais para ser negligenciadas. Embora os smartphones tenham se popularizado já há uma década, com o lançamento do iPhone, a base de dados dos pesquisadores ainda está em construção. Um estudo publicado no início deste ano pela Universidade College London, do Reino Unido, mostrou que as meninas são duas vezes mais propensas a ter depressão devido ao uso das redes sociais do que os meninos. O levantamento analisou as associações entre redes sociais e sintomas depressivos em cerca de 11 000 jovens britânicos. Para a pesquisa, todos os participantes responderam a um questionário com informações sobre o tempo diário de uso de internet, a frequência de assédios on-line, os padrões de sono e impressões sobre a autoestima. Algumas conclusões: 25% das meninas apresentaram sinais clínicos de depressão; entre os meninos, a taxa foi de 11%. Outro levantamento, também do Reino Unido, avaliou quanto as principais redes (YouTube, Instagram, Twitter e Snapchat) influenciavam os jovens entre 14 e 24 anos. O canal mais nocivo, de acordo com o estudo, seria o Instagram. A necessidade, ou melhor, a imposição de fotos bem posadas e tratadas com filtros impacta a autoimagem e multiplica um medo recentíssimo, com direito a sigla — FOMO, que significa fear of missing out, ou medo de ficar de fora (veja o quadro).
O uso excessivo da internet é especialmente preocupante na adolescência, período em que o cérebro é mais vulnerável ao surgimento de doenças mentais. “As redes amplificam algumas fraquezas comuns entre os adolescentes — a busca por ser valorizado, a aprovação pelos grupos, a apreensão com as aparências”, diz Guilherme Polancyzk, psiquiatra de crianças e adolescentes da Universidade de São Paulo. “Essa transição para a vida adulta pode tornar-se mais difícil.” É tão preocupante o risco de o admirável mundo novo produzir uma geração doente, psiquicamente desguarnecida, que as grandes empresas de tecnologia começam a se mexer, criando mecanismos de freio. Recentemente, o Instagram anunciou um recurso para tentar ajudar usuários com transtornos de ansiedade e depressão. Se alguém fizer uma busca por hashtags associadas a essas condições, receberá rapidamente uma mensagem com sugestões de cuidados. E mais: o Instagram chegou a cogitar uma experiência radical, ao testar o fim da contagem de curtidas. A tentativa é reduzir a ansiedade pelos likes. Mas a pressão é permanente, talvez seja inescapável, e continuará a acelerar, na velocidade das redes, explosões como a de Whindersson Nunes.
Publicado em VEJA de 17 de julho de 2019, edição nº 2643
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