Um modelo matemático desenvolvido na Universidade de São Paulo (USP) com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) confirmou os morcegos como os mais prováveis hospedeiros do SARS-CoV-2 e pode ajudar a prever animais que podem ser repositórios de novos coronavírus. Os resultados foram publicados na revista Scientific Reports.
“Cruzamos informações da proteína S, a espícula [a parte que se liga ao receptor humano ou animal] de diferentes coronavírus num modelo de aprendizado de máquina. Chegamos ao morcego como o mais provável hospedeiro inicial do SARS-CoV-2”, conta Irina Yuri Kawashima, primeira autora do trabalho, realizado como parte de seu doutorado no Programa Interunidades em Pós-Graduação em Bioinformática sediado no Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP.
Os pesquisadores esperam que o modelo possa ser usado no caso de novas emergências de vírus da mesma família, uma vez que ele também foi capaz de apontar os hospedeiros de outros coronavírus como o SARS-CoV e o MERS, que causaram surtos em 2003 e 2012, respectivamente.
“O resultado é um alerta para a necessidade de uma maior vigilância em relação ao surgimento de novos vírus. O desmatamento e as mudanças climáticas, entre outras causas, podem nos expor ao contato com vírus que infectam animais e que podem passar a infectar humanos”, afirma Ronaldo Fumio Hashimoto, professor do IME-USP apoiado pela Fapesp e coordenador do estudo.
Segundo o pesquisador, o trabalho é corroborado por estudos recentes, como um publicado no ano passado na revista PLOS Pathogens. O artigo também aponta o morcego como melhor candidato a hospedeiro do coronavírus que desencadeou a pandemia de Covid-19.
“Esperávamos que o modelo apontasse primeiramente para os humanos como hospedeiros iniciais, até porque as amostras de SARS-CoV-2 que utilizamos eram na maioria isoladas de humanos. Mas os coronavírus coexistem com os morcegos há muito tempo. Ainda que eles saltem para outro hospedeiro, demora muito para que aquele se consolide como o principal reservatório do vírus”, diz Kawashima.
Um novo método
A inspiração para o modelo matemático partiu de outro, publicado em 2015 e que apontou os hospedeiros de outros coronavírus que emergiram muito antes da atual pandemia.
Os pesquisadores da USP aplicaram o modelo ao SARS-CoV-2, mas este não obteve sucesso em prever um hospedeiro coerente com os dados que se tinha até então.
“Quando usamos o modelo que já existia, o hospedeiro que ele apontava eram aves. Foi então que entendemos que precisávamos criar nossa própria ferramenta”, relata Marielton dos Passos Cunha, que realiza estágio de pós-doutorado na Plataforma Científica Pasteur-USP (SSPU, na sigla em inglês), outro coautor do estudo.
Os cientistas da USP substituíram, então, o tipo de informação biológica utilizada como ponto de partida das análises. Enquanto no modelo de 2015 foram considerados os chamados dinucleotídeos da proteína S – pedaços do RNA que contêm certas informações do genoma viral –, no novo modelo foi aplicada uma técnica conhecida como uso relativo de códons sinônimos (RSCU, na sigla em inglês), também da proteína S.
Os códons são combinações de três nucleotídeos (unidades que formam o material genético, no caso, o RNA viral) que codificam um aminoácido (unidade que forma as proteínas). Códons sinônimos são aqueles que codificam o mesmo aminoácido, sendo que cada organismo possui uma “preferência” no uso desses (viés de uso), que pode ser medida pelo RSCU. Assim, essa medida pode ser aplicada a um determinado RNA viral, onde são obtidos padrões que podem estar ligados à adaptação de um vírus a um determinado hospedeiro.
Cruzando os dados, o modelo pôde apontar com precisão os hospedeiros naturais dos outros coronavírus, como também do SARS-CoV-2. Com isso, eles esperam que, numa nova emergência de vírus da família Coronaviridae, a ferramenta possa apontar seu principal hospedeiro.
“Conhecer o primeiro hospedeiro do vírus é muito interessante no direcionamento da pesquisa mais básica e na vigilância de novos vírus. Os modelos de aprendizado de máquina funcionam muito bem e são relativamente baratos de se produzir, mas dependem muito dos dados disponíveis. Por isso, é vital que se fomente o estudo de novos vírus, coletando amostras de animais selvagens, sequenciando os genomas virais e disponibilizando-os em bancos de dados públicos”, encerra Cunha.