Uma geração inteira, a de jovens adultos no início dos anos 1980, foi marcada pela eclosão da pandemia de aids. Os primeiros casos de morte de celebridades, como a do ator americano Rock Hudson e a do estilista brasileiro Markito, associados às descrições dos severos efeitos para o organismo, deflagraram o medo diante do desconhecido, fantasma que se imiscuiria no cotidiano. Mais até do que a pandemia de covid-19, que nos impôs o distanciamento social e o uso de máscaras, para que, então, tudo depois voltasse ao dito velho normal, o vírus HIV provocou radical mudança no comportamento da humanidade — no caso, no comportamento sexual. O uso de preservativos virou norma, e não apenas para efeito contraceptivo. O que antes era a celebração de sucessivos parceiros passou a ser visto com cautela. Não raro, no início de um relacionamento, pessoas chegavam a pedir ao companheiro um teste que confirmasse a ausência do patógeno.
Excetuando-se os exageros, aos olhos de hoje, algumas dessas posturas são habituais, de responsabilidade e que a ninguém cabe considerar conservadoras, como se a civilização tivesse dado um passo atrás. Trata-se apenas de cuidado necessário — e naturalíssimo — com a saúde. É movimento que caminhou de mãos dadas com um fascinante capítulo de avanço da ciência. Em 1987, surgiu a primeira droga para o tratamento da condição, o AZT. Em 1996, uma combinação de medicamentos passou a compor o “coquetel”, atalho para o controle do número de infectados. Em seguida, já nos anos 2000, vieram os antirretrovirais e os remédios profiláticos pré-exposição, os PrEP, extremamente efetivos. E, então, a aids deixou de representar a sombra aterrorizante dos primeiros tempos — ainda que todo o cuidado seja pouco e uma única morte signifique uma tragédia. A derradeira fronteira, como mostra a minuciosa reportagem da edição, é o desenvolvimento, enfim, de uma vacina, cujos testes bem-sucedidos em humanos acabam de ser anunciados.
Acompanhar os quarenta anos dessa aventura, sinônimo de respeito pela medicina, é também seguir o caminhar dos humores da sociedade, que sabe — a partir do esforço inicial de corajosos militantes que saíam às ruas para exigir olhar mais empático e investimento em pesquisa — afastar o preconceito, o inaceitável estigma. A primeira reportagem de capa de VEJA destinada ao tema, em agosto de 1985, escrita com riqueza e clareza de informações, apontava um triste efeito inicial da pandemia. Assim, em um dos textos: “Por trás de cada doença, nem sempre há apenas um vírus, uma bactéria ou um fungo. Muitas vezes, de maneira mais ou menos disfarçada, há também a condenação do doente, ou pelo menos a suspeita de que alguma coisa ele fez, ou deixou de fazer, para atrair a má sorte. ‘Irmãos, vocês merecem a desgraça’, repetia sempre, em seus sermões, o jesuíta Paneloux, personagem de A Peste, de Albert Camus”. Lá atrás, e infelizmente ainda hoje, no Brasil, há políticos oportunistas — e irresponsáveis — que atribuem os males a alguma vingança divina ou simplesmente minimizam vírus mortais. A trajetória da aids, um prêmio ao conhecimento humano, mostra que eles estão errados. Muito errados.
Publicado em VEJA de 24 de maio de 2024, edição nº 2894