O número crescente de casos de demência é um dos maiores desafios para os sistemas de saúde pública mundial. A doença de Alzheimer, por exemplo, cresce exponencialmente: só nos Estados Unidos são 6 milhões de casos, com previsão de aumento para 13 milhões até 2050. No Brasil, dados do Ministério da Saúde indicam que cerca de 1,2 milhão de pessoas têm a doença e 100 mil novos casos são diagnosticados por ano no país.
Números preocupantes para uma condição que não tem cura e ainda não está clara para os cientistas como se manifesta para causar os sintomas conhecidos. Por conta disso, o acesso a tratamentos eficazes parece mais distante do que nunca. Então qual seria a solução, dentro desse cenário? Especialistas indicam que antes de se falar em cura ou mesmo em formas de prevenção, o caminho é melhorar a compreensão sobre a doença e ter como objetivo final, o tratamento anterior a manifestação de qualquer sinal ou sintoma comportamental.
Atualmente, os entendimentos sobre o Alzheimer giram em torno da ideia de que certas formas de uma proteína chamada beta-amilóide se aglomeram entre os neurônios no cérebro de uma maneira que prejudica a memória e provoca os sintomas. Esse modelo foi confirmado pela primeira vez em 2006, com um artigo publicado na Nature, que usou um tipo de camundongo para demonstrar a existência de aglomerados de beta-amilóide no cérebro, causados por um subtipo específico da proteína – e permanece até hoje como uma explicação de como a doença se desenvolve.
Controvérsias
Mas há controvérsias sobre essa ciência. Além de uma compreensão limitada das causas subjacentes, tanto genéticas quanto ambientais, existe um alerta publicado na revista científica Science, em julho de 2022, que traz dúvidas sobre algumas imagens do artigo de 2006, que teriam sido manipuladas.
Mesmo sendo foco de uma investigação da equipe editorial da Nature, o artigo original é citado em mais de 2.200 artigos científicos de fonte confiável e acessado mais de 50.000 vezes. E de qualquer forma, independentemente do resultado, não há dúvida de que o modelo foi altamente influente na ciência do Alzheimer e teve impacto em pesquisas sobre tratamentos.
Esta, porém, não foi a única controvérsia a atingir a ciência do Alzheimer no ano passado. Após ter sido abordado por advogados de dois proeminentes neurocientistas, Matthew Schrag, também neurocientista e médico da Vanderbilt University, nos Estados Unidos, alertou sobre imagens relativas ao Simufilam, um medicamento para Alzheimer da Cassava Sciences, empresa de biotecnologia com sede no Texas, que teoricamente melhoraria a cognição do paciente ao reparar uma proteína que pode bloquear os depósitos cerebrais de beta-amilóide. Com base na investigação de Schrag sobre essas imagens, foi solicitado que os ensaios fossem interrompidos por meio de uma petição à Food and Drug Administration (FDA). A empresa também foi investigada pelo Departamento de Justiça dos EUA, como revelou a agência Reuters, em julho de 2022.
Embora a FDA não tenha interrompido os testes, a Reuters informou que as ações da empresa caíram 30% após o início da investigação criminal. Em janeiro de 2023, a Cassava Sciences publicou resultados intermediários sem números significativos. Schrag também havia falado sobre a aprovação acelerada do medicamento Aduhelm para Alzheimer pelo FDA, em junho de 2021, que afirma melhorar a cognição eliminando o beta-amilóide.
No entanto, entre as várias controvérsias e as idas e vindas entre advogados, empresas de biotecnologia, a FDA e até mesmo o Departamento de Justiça dos EUA, há um grupo que não está em melhor condição: os pacientes de Alzheimer.
Situação que ficou mais crítica ainda quando, em janeiro de 2023, a FDA não aprovou o Donanemab, medicamento da farmacêutica Eli Lilly, sob a justificativa de que o ensaio clínico conduzido pela empresa não mostrou dados suficientes para determinar sua eficácia.
Isso ajudou a levantar a questão: quais os próximos passos para encontrar um tratamento para uma doença debilitante, que só deve aumentar em prevalência nos próximos anos?
Dificuldade em obter dados claros
“Um dos maiores desafios para o avanço do desenvolvimento de tratamentos para a doença de Alzheimer tem sido identificar, recrutar e reter os pacientes apropriados”, afirmou Bruce Albala, diretor do Centro de Pesquisa Clínica responsável pela supervisão e implementação de ensaios clínicos na UC Irvine, nos Estados Unidos ao Medical News Today.
Segundo o médico, outro problema é a duração dos estudos, que se estende por vários anos, já que qualquer tratamento para retardar a progressão da doença depende justamente do tempo para que o grupo controle não tratado ou com tratamento habitual apresente piora na memória e nas atividades diárias em comparação com aqueles que receberam a medicação experimental. Sem contar as diferenças entre a forma como a doença se manifesta em diferentes pacientes, o que também é fator de complicação. “A piora para aqueles com doença de Alzheimer não hereditária é relativamente lenta e um estudo requer um grande número de participantes para mostrar uma diferença significativa entre aqueles que tomam a droga experimental e os que recebem o placebo”, explicou.
Kath Intson, CEO da Varient – startup de medicina de precisão – e doutoranda na Universidade de Toronto, no Canadá, concordou que os desenhos dos ensaios precisam ser profundamente analisados para entender o porquê não apresentam os resultados esperados. “No estudo da Eli Lilly, que desenvolveu o novo medicamento para Alzheimer, os critérios de exclusão foram para pacientes que tomavam inibidores da acetilcolina esterase, ou seja, é apenas para essa população que é resistente a esse tratamento, comumente associado à melhora da função cognitiva”, disse ela. “E isso é interessante, porque provavelmente existem alguns subtipos que respondem ao tratamento com inibidores da acetilcolina esterase e podem não ser os mesmos subtipos que respondem ao donanemab, experimental da Eli Lilly”, acrescentou.
Falta de ciência básica
Os especialistas também ressaltaram que testar os medicamentos em pacientes que já eram sintomáticos causava impactos limitados dos medicamentos, pois o cérebro já tem danos. “Até recentemente, a maioria dos ensaios clínicos foram realizados em pessoas que já manifestavam demência, ou seja, pacientes com doença de Alzheimer leve ou moderada. O que pode ser tarde demais porque o cérebro já está sobrecarregado com a patologia”, afirmou Ramit Ravona-Springer, psiquiatra geriátrica e diretora da Clínica de Memória Psicogeriátrica no Sheba Medical Center, em Israel.
Para Ramit, a solução seria encontrar maneiras de detectar a doença de Alzheimer mais cedo. “As ferramentas de triagem disponíveis são baseadas em procedimentos invasivos como a punção lombar ou em avaliações radiológicas muito caras como a amiloide PET, que não são acessíveis a todos. Espero que, em um futuro próximo, os biomarcadores sanguíneos estejam mais disponíveis”, disse.
De acordo com os médicos, também é importante definir melhor as subcategorias da doença de Alzheimer e determinar o papel da genética em cada uma delas. “A própria Eli Lilly parece estar reconhecendo isso com outras demências. Estão desenvolvendo uma terapia para subtipos genéticos específicos da doença de Parkinson, por exemplo”, observou a psiquiatra.
Ou seja, a doença de Alzheimer poderia, portanto, ser tratada não apenas pelo acúmulo de beta-amilóide, mas sim com foco nos genes que se expressam de forma anormal em pessoas com a doença.
A barreira hematoencefálica
As oportunidades para a genômica elucidar ainda mais as opções de tratamento não param por aí, já que o sequenciamento dos genomas humanos nos testes pode ajudar a determinar se as pessoas com uma variante genética específica poderiam se beneficiar mais de um medicamento tradicional direcionado ao beta-amilóide do que outras. Algo semelhante do que já acontece com o câncer e a pesquisa atual sobre a aplicação de abordagens de medicina de precisão.
O grande problema, no caso do Alzheimer, porém, é a dificuldade em projetar drogas que atravessem a barreira hematoencefálica. Isso quer dizer que, em condições neurológicas, são necessárias doses mais altas de drogas para obter uma quantidade relativamente pequena no local de ação, o que pode levar a grandes danos e efeitos colaterais.
Por isso, o modelo beta-amilóide continua sendo a teoria dominante na ciência do Alzheimer, mas uma melhor compreensão da doença é muito importante para que os tratamentos medicamentosos possam ser direcionados contra os mecanismos biológicos cruciais que realmente causam a doença. “A fim de entender como a doença de Alzheimer progride, estudos de longo prazo, como o ADNI [Alzheimer’s Disease Neuroimaging Initiative] acompanharam pessoas que têm uma forma muito precoce da doença ao longo de muitos anos, usando tanto biológicos – imagens cerebrais, LCR [líquido cefalorraquidiano] e análise de sangue, patologia, etc. – quanto os testes de memória cognitiva, mas diagnosticar e tratar precocemente, muito antes de quaisquer sinais ou sintomas comportamentais serem evidentes, é o que devemos fazer de nosso objetivo final”, encerrou o professor Abdala.