Em abril de 2019, fui chamado pelo Hospital do Cérebro, uma unidade pública de referência no Rio onde trabalho, para acompanhar um raríssimo caso de gêmeos unidos pelo crânio. Arthur e Bernardo eram ligados pelo topo da cabeça, sendo que um olhava para baixo e o outro, para cima, e viviam deitados. O quadro se tornava ainda mais complexo porque eles compartilhavam 15% do cérebro e ainda uma veia que conduzia o sangue da cabeça até seus corações. Quando conheci os pais, vindos de Roraima, estavam em intenso sofrimento, com medo de perder as crianças, àquela altura com 8 meses. Logo entendi que o caso era o maior desafio de minha trajetória profissional de quase quatro décadas e saí de lá com a convicção de que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para ajudar a família.
Tomar a decisão de realizar uma cirurgia para separá-los não foi simples. Um dos maiores especialistas do mundo nesse tipo de procedimento, que envolve crânios fixados um no outro, veio ao Brasil avaliar a situação e desaconselhou a operação, dada sua delicadeza e o risco. A notícia devastou os pais, que, dilacerados, precisaram de acompanhamento psicológico. Pois mesmo tendo escutado atentamente as palavras de meu colega, não me convenci. Com anuência dos pais, segui adiante com o plano de submeter os gêmeos à cirurgia. Adriele, a mãe, um dia soltou uma frase que me marcou. Não queria que os filhos continuassem naquele calvário. “Até a morte para mim é uma solução, só não posso conviver com o sofrimento deles”, disse. Ouvi-la assim só aumentou minha obstinação. E passei noites em claro estudando o caso.
Recorri à ciência e a todos os recursos do hospital. Por meio de convênios com universidades, obtive modelos anatômicos do cérebro dos garotos em 3D, para determinar o local exato da veia que eles compartilhavam. Também fizemos versões digitais que me permitiram discutir o assunto com o britânico Owase Jeelani, outro grande expert, que passou a me auxiliar. Teriam de ser feitas várias operações. A primeira delas foi tomada pelo medo. O procedimento tinha o objetivo de dissecar vasos sanguíneos que alimentavam a veia dividida pelos gêmeos, como se estancasse os afluentes de um rio. Trilhando o protocolo, decidimos intervir pelo lado do Arthur, o mais frágil e com menos chances de sobreviver. São decisões médicas complexas e doloridas. Após cinco cirurgias, o cérebro dele foi capaz de encontrar novos caminhos para levar o sangue ao coração. Notei, no entanto, que se o operasse mais uma vez ele não aguentaria. Tomei então uma decisão nunca antes tentada na medicina: fazer as cirurgias seguintes no Bernardo, o gêmeo mais forte. Isso colocava a vida dos dois em risco. Felizmente, a escolha se mostrou acertada.
Os irmãos, enfim, estavam prontos para ser separados. Pairava um clima de otimismo e aí foi necessário trazer a família e minha própria equipe à realidade: o mais difícil estava por vir. A operação mobilizou quase 100 profissionais e ocupou todas as salas do centro cirúrgico. Ainda que com tanto planejamento, fomos surpreendidos com a ruptura de uma parte da veia, o que causou um enorme sangramento. Agimos rápido e estabilizamos o quadro. Na hora da separação, mais dificuldades: os vasos estavam muito profundos, e Arthur parecia que não iria resistir. Com técnica e fé, vencemos o obstáculo com o auxílio de um ultrapotente microscópio. Ver as duas macas se afastando e os irmãos separados foi um momento de pura emoção. Hoje com 4 anos, eles se recuperam bem. Algumas sequelas permanecerão para o resto da vida e é difícil saber quais habilidades eles vão desenvolver. O progresso, porém, impressiona. Os irmãos já dançam em seus carrinhos, estão aprendendo a se comunicar e um deles, o Arthur, fica até de pé. Eles me ensinaram de forma tocante que a única certeza que podemos ter é a esperança.
Gabriel Mufarrej em depoimento dado a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 14 de setembro de 2022, edição nº 2806