A dor dilacerante da perda de um ente querido atravessa o tempo e o espaço e, compreensivelmente, afeta o cotidiano de quem fica, dando lugar a dias e dias em que a desolação supera todas as demais sensações e toma conta da pessoa. Mas a vida segue em frente, um clichê que, no caso dos enlutados, se confirma de forma tão inconsciente e imprevista que chega a causar surpresa — um belo dia, percebe-se que a tristeza que não passa continua lá, mas acomodada em um segundo plano que não compromete as demais emoções, inclusive a felicidade. A duração desse processo varia, claro, mas agora a medicina define um prazo a partir do qual ele pode deixar de ser considerado natural: quem permanece consumido pela angústia tendo se passado vários meses desde a morte de alguma pessoa próxima pode estar padecendo de uma doença, o transtorno do luto prolongado, que requer cuidados específicos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu a patologia, no início do ano, entre os 55 000 códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID), que serve de base para estatísticas de saúde em todo o mundo. Em março, a condição também passou a integrar o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria e considerado a bíblia do setor. Nos dois documentos, a diferença entre luto normal e o patológico segue o critério cronológico. O DSM especifica que o diagnóstico de transtorno do luto prolongado se aplica a pacientes que apresentarem anseio intenso pela presença da pessoa que se foi, bem como raiva, amargura, tristeza e culpa de forma aguda e crônica — a ponto de incapacitar para a vida normal —, passados doze meses desde a morte. Já o prazo estabelecido pela OMS para a definição do transtorno é menor, de seis meses.
A maior parte dos psiquiatras e psicólogos aplaudiu a iniciativa de qualificar o luto intenso e prolongado como patologia, ampliando a chance de tratamento para pessoas que não conseguem sair do poço de sofrimento, uma angústia cotidiana que afeta 7% dos enlutados no mundo, segundo levantamento recente da Universidade de Aarhus, da Dinamarca. “Trata-se de uma condição rara mas incapacitante, que traz prejuízos para a vida social e a saúde dos enlutados e pode até levar ao suicídio”, alerta Holly Prigerson, diretora do Centro de Pesquisas em Cuidados Paliativos da Universidade Cornell, em Nova York. Segundo especialistas consultados por VEJA, a proporção de indivíduos afetados pelo transtorno do luto prolongado tende a crescer devido ao aumento exponencial de mortes causadas pela Covid-19. “O impedimento de se despedir de forma digna dos familiares em razão das medidas sanitárias gerou seriíssimos problemas no processo de luto”, afirma o psiquiatra Rafael Moreno, que viu o número de pacientes impactados pelo luto aumentar significativamente nos últimos dois anos.
A técnica em radiologia Simone Carvalho, 42 anos, soube da morte do pai por Covid quando estava na UTI lutando contra a mesma doença, em março de 2021, e sentiu a ausência dele de maneira tão insuportável que não conseguia trabalhar ou estudar. “O sentimento me bloqueou. Eu me sentia incapaz de tudo, até de dormir e comer”, explica. Diagnosticada com o distúrbio há cinco meses, Simone diz que dar nome a seu problema foi “uma luz no fim do túnel”. “Nunca tinha ouvido falar do transtorno, mas me senti acolhida ao perceber que não era a única a sofrer”, conta ela, que participa de um grupo de apoio com mais de 200 pessoas na mesma situação e faz tratamento psicológico e psiquiátrico.
Além de dar visibilidade ao transtorno, o reconhecimento da gravidade do luto prolongado tem impulsionado o desenvolvimento de tratamentos específicos para o distúrbio, que é frequentemente confundido com depressão. Katherine Shear, diretora do Centro de Luto Complicado da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, está na linha de frente das pesquisas em torno de um método terapêutico mais adequado para a doença. “O tratamento com antidepressivos não é eficaz no luto prolongado, que é diferente da depressão na origem e em alguns sintomas”, diz. Flaviana de Souza, dona de casa de Pontes Gestal, interior de São Paulo, entende bem a diferença: sofrendo de depressão há anos, mergulhou em um novo e dolorido tormento quando perdeu o pai de infarto, há dois anos. “Eu vivo esse luto a todo momento. Parece que minha vida parou”, descreve ela, que recebeu o diagnóstico há dois meses e está sendo tratada com terapia e medicamentos.
Mesmo tendo ampla aceitação, no entanto, a classificação do transtorno enfrenta resistência de uma parcela dos profissionais. “A patologização do luto é emblemática de uma sociedade que não tolera sentimentos desagradáveis e não pode parar para que as pessoas processem o sofrimento no seu tempo”, critica Artur Mamed, psicólogo e autor de Apontamentos para uma Clínica Compreensiva da Perda, livro sobre as mudanças na abordagem do luto ao longo do século XX. Um dos maiores opositores da “medicalização” generalizada, Allen Frances, psiquiatra e professor da Universidade Duke, dos Estados Unidos, alerta sobre a possibilidade de erros de diagnóstico. “Alguns profissionais podem abusar do novo rótulo, correndo o risco de estigmatizar o luto e receitar tratamentos para um processo natural ”, diz ele.
Atravessar a dura perda de pessoas queridas é um aprendizado individual e inescapável a que praticamente todo mundo está sujeito, em algum momento. Como outros sentimentos profundos e marcantes, o luto transita com frequência pela música (caso da bela e tristíssima Pedaço de Mim, de Chico Buarque), pelas telas (como na delicada e ácida série After Life, de Ricky Gervais) e, claro, pela literatura, onde foi dissecado por grandes pensadores (veja no quadro). Justamente por estar contido em um sentimento tão abrangente, o diagnóstico do transtorno do luto prolongado tem de ser feito com cautela — a experiência mostra que a maioria dos enlutados, por mais que sofra, dificilmente vai adoecer por causa da dor. “A avaliação clínica tem de examinar todos os aspectos e ir além de encaixar o paciente dentro do inventário de sintomas da CID ou do DSM”, observa Cecilia Rezende, psicóloga e coordenadora do Entrelaços, instituto especializado no atendimento a enlutados.
Há quem passe por um longo período de extremo sofrimento sem, no entanto, parar de trabalhar e de se comunicar com outras pessoas, ambos sintomas do transtorno do luto prolongado. Coordenador da Diversidade Sexual da prefeitura do Rio de Janeiro, o estilista Carlos Tufvesson enfrentou durante a pandemia a morte da mãe e do marido em questão de seis meses. “É uma dor insuportável, que tira a noção de futuro — eu estava vivendo uma vida a dois e, do nada, fiquei ali sozinho”, relata Tufvesson, que, no entanto, não se sentiu paralisado. “Acho que cada um tem sua forma de reagir a essa dor. Meu trabalho me ajuda a seguir em frente”, explica. Para quem não consegue sair sozinho do fundo do poço, porém, a possibilidade de tratamento abre uma fresta não na saudade, que nunca passa, mas na intensidade com que é sentida.
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804