Sempre fui uma pessoa ativa, praticante de atividades físicas. Elegi a bicicleta como meio de transporte e pedalava pela cidade cada vez que precisava me deslocar. Até fundei um instituto para repensar a mobilidade urbana. Por causa desse meu condicionamento, fiquei surpreso quando comecei a sentir dores no peito em pleno Carnaval de 2020. Era um infarto. Fui levado para o hospital e operado de emergência, para o implante de dois stents. Como não havia vagas, já que quase todos os leitos estavam ocupados para tratamento da Covid-19, recebi alta logo. A partir daí, vivi um entra e sai em diversos hospitais particulares, fazendo uma batelada de exames, até uma ressonância magnética apontar insuficiência cardíaca grave. Sem um transplante, morreria dali a três ou quatro meses.
A fragilidade da situação me amedrontou e eu decidi procurar o Instituto do Coração, em São Paulo, um hospital público onde atuam alguns dos melhores médicos do Brasil. Minha primeira consulta demorou três meses para ser agendada, mas meu caso chamou atenção. Um cateterismo detectou mais um agravante: a pressão pulmonar estava muito elevada. Nesse caso, o transplantado precisa ser acoplado ao Heartmate, uma espécie de coração mecânico externo que normaliza a pressão antes de o sangue passar pelo novo órgão. O equipamento custa quase 1 milhão de reais, e não havia nenhum disponível naquele momento.
O tempo estava passando, os medicamentos já não faziam efeito, a pressão pulmonar seguia subindo e eu podia morrer a qualquer momento. Me internaram. Foi muito difícil ficar isolado das pessoas que amo, falando com elas apenas pelo celular. A esperança já estava se esvaindo quando o doutor Fábio Gaiotto me propôs uma solução inédita: implantar um novo coração, mas manter o antigo batendo em meu peito para desempenhar a função do Heartmate. Outras pessoas já haviam vivido com dois corações, mas nunca com o propósito de substituir a máquina. Topei na hora, não só porque poderia me salvar, mas porque a experiência ajudaria muita gente no futuro.
Em agosto, finalmente me submeti à cirurgia. Foi complicado voltar da anestesia, tinha delírios em que rejeitava o coração novo. Não me via com ele, só com o velho. Foi um momento difícil, doloroso, solitário. Custei a achar que continuaria vivo. Mas tudo deu certo, a pressão pulmonar voltou ao normal e pude sair da UTI, ir para o quarto e receber a visita das pessoas que mais amo.
Apesar de tudo o que se escreve e fala sobre coração e emoção, claro que eu sabia que o músculo cardíaco não é responsável pelos sentimentos. Mas, perto da minha família, senti meus dois corações batendo por eles — em ritmos diferentes, algo que levei um tempo para me acostumar. Vê-los em um ecocardiograma, o original meio achatado, o outro vibrante, forte, foi uma sensação magnífica.
Tudo evoluía bem e a retirada do coração antigo estava prevista para acontecer em seis meses, mas um coágulo descoberto em um dos exames de acompanhamento apressou as coisas. No início de outubro, depois de passar dois meses com dois corações no peito, voltei à sala cirúrgica para remover o órgão doente. Felizmente, tudo correu bem de novo. Sou muito grato ao doutor Gaiotto, que me trata como se eu fosse parte de sua competente equipe. Sei que meu caso pode mudar a história da cardiologia no Brasil. Todos os esquipamentos e softwares do hospital eram para um coração só e precisaram ser adaptados. Tudo o que for aprendido daqui para a frente será por meio da minha experiência, que é algo muito maior do que eu. Sinto-me honrado de ter ajudado a ciência brasileira a se desenvolver — mais ainda por isso ter sido possível dentro do SUS.
Lincoln Paiva em depoimento dado a Ricardo Ferraz
Publicado em VEJA de 10 de novembro de 2021, edição nº 2763