A descoberta do autismo por pais que buscavam diagnóstico para os filhos
Fenômeno é cada vez mais comum em consultórios, e a ciência busca explicá-lo; hoje se estima que de 40% a 80% dos casos estejam relacionados aos genes
Ao empreender uma jornada para desvendar entraves ao desenvolvimento esperado de seus filhos, muitos pais têm feito um mergulho para entender características comportamentais suas que não se enquadram no que é rotulado como “normal”. Nessa busca, não é raro que, feito espelho, passem a identificar que alguns traços típicos da criança se assemelham àqueles que carregam de longa data. E, na procura por especialistas para cravar um diagnóstico para a prole, homens e mulheres acabam ouvindo, já na idade adulta, que também têm o transtorno do espectro autista (TEA). Eis um fenômeno cada vez mais corriqueiro em consultórios, e a ciência busca explicá-lo. Hoje se estima que de 40% a 80% dos casos de autismo estejam relacionados aos genes. Desse modo, quando um filho descobre o transtorno, na teoria um pai também teria mais chances de apresentá-lo — e vice-versa.
Receber o diagnóstico depois dos 30 ou 40 anos tem ajudado pacientes a compreender as dores da infância e a reelaborar seus aprendizados. Um dos efeitos saudáveis é a luta por mais respeito a quem convive com o autismo. Descrita pela primeira vez na década de 1940, a condição passou por mudanças conceituais ao longo do tempo, relacionada sobretudo a inabilidade social, falta de interação com os outros, movimentos repetitivos e necessidade de rotinas rígidas. Com os anos e as pesquisas, foi possível romper estereótipos e trabalhar com a ideia de um amplo espectro, com diferentes níveis de funcionalidade, autonomia e comprometimento.
A artista plástica Vanessa Meyer encontrou a resposta para o que pareciam meros incômodos, mas que impactavam suas relações até com a família, no ano passado. O barulho a deixava agressiva e contatos visuais mais intensos eram desconfortáveis. Na infância, foi alvo de bullying e reverberava no seu dia a dia o rótulo de que era uma filha rebelde e geniosa. Depois de se debruçar no diagnóstico de distúrbio do processamento auditivo central do filho de 8 anos — algo que pode acometer pessoas com TEA —, veio seu próprio diagnóstico. “Na minha vida, senti tudo que o autismo mostra, só não sabia o nome”, diz. “Não foi fácil descobrir, mas abracei e aceitei o que sou.”
A descoberta de Vanessa, que também é mãe de uma jovem de 18 anos, ajuda a abrir uma avenida de boas possibilidades: a de que, no futuro, as pessoas sejam mais empáticas e respeitosas com as diferenças — ou, para usar uma expressão em alta, com a neurodiversidade. “As crianças estão mais evoluídas do que os adultos, meus filhos receberam meu diagnóstico com amor e carinho”, conta ela.
O autismo em si não é doença, e costuma ser dividido em três níveis, de acordo com a necessidade de suporte e as manifestações cognitivas, sensoriais e afetivas que se encaixam no espectro. Durante muito tempo, porém, apenas indivíduos com características mais demarcadas recebiam o diagnóstico. Com o conhecimento e a conscientização a respeito, tudo mudou. E aí se vê o tal “boom” de novos casos. Enquanto o primeiro estudo epidemiológico sobre o tema calculava que a prevalência fosse de 4 a cada 10 000 pessoas, hoje se estima que 1 em cada 59 tenha autismo. “Há uma revolução neurodivergente em curso”, diz o psiquiatra Alexandre Valverde, referência nacional no tema e também ele parte do espectro.
O compartilhamento de informações sobre o assunto entre pais e mães com filhos autistas tem auxiliado essa comunidade a enfrentar os percalços para entender e mesmo detectar a condição. Nessa rede, está o doutor em educação Lucelmo Lacerda, que se transformou em um ativista nas mídias sociais depois de idas e vindas no tratamento de seu filho Benício, diagnosticado aos 3 anos, em 2011. Com o trabalho de divulgação científica e as consultas médicas, veio a confirmação de que ele também apresenta TEA — e a investigação confirmou o quadro para seu irmão, dois primos e dois sobrinhos. “Essa descoberta promoveu um envolvimento de outro nível com esse que, agora, é o debate da minha vida”, afirma. E de muitas outras. Depois de seis meses de avaliação, a deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP) recebeu o laudo que a pôs dentro do espectro do autismo, bandeira que agarrou após o diagnóstico do filho. Para ela, foi um alento: “Quando se diagnostica a criança, ela vai ter mais autonomia no futuro. Quando se diagnostica o adulto, você cura o passado”. Que assim seja.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855