A descoberta do autismo por pais que buscavam diagnóstico para os filhos
Fenômeno é cada vez mais comum em consultórios, e a ciência busca explicá-lo; hoje se estima que de 40% a 80% dos casos estejam relacionados aos genes
![NO SANGUE - Herança no DNA: genes influenciam de 40% a 80% dos casos](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/GettyImages-1272562036.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
Ao empreender uma jornada para desvendar entraves ao desenvolvimento esperado de seus filhos, muitos pais têm feito um mergulho para entender características comportamentais suas que não se enquadram no que é rotulado como “normal”. Nessa busca, não é raro que, feito espelho, passem a identificar que alguns traços típicos da criança se assemelham àqueles que carregam de longa data. E, na procura por especialistas para cravar um diagnóstico para a prole, homens e mulheres acabam ouvindo, já na idade adulta, que também têm o transtorno do espectro autista (TEA). Eis um fenômeno cada vez mais corriqueiro em consultórios, e a ciência busca explicá-lo. Hoje se estima que de 40% a 80% dos casos de autismo estejam relacionados aos genes. Desse modo, quando um filho descobre o transtorno, na teoria um pai também teria mais chances de apresentá-lo — e vice-versa.
Receber o diagnóstico depois dos 30 ou 40 anos tem ajudado pacientes a compreender as dores da infância e a reelaborar seus aprendizados. Um dos efeitos saudáveis é a luta por mais respeito a quem convive com o autismo. Descrita pela primeira vez na década de 1940, a condição passou por mudanças conceituais ao longo do tempo, relacionada sobretudo a inabilidade social, falta de interação com os outros, movimentos repetitivos e necessidade de rotinas rígidas. Com os anos e as pesquisas, foi possível romper estereótipos e trabalhar com a ideia de um amplo espectro, com diferentes níveis de funcionalidade, autonomia e comprometimento.
![ANDREA WERNER 2023.jpg CAUSA PÚBLICA - Andréa Werner: deputada, que já era ativista, também recebeu diagnóstico após avaliação](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/ANDREA-WERNER-2023.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
A artista plástica Vanessa Meyer encontrou a resposta para o que pareciam meros incômodos, mas que impactavam suas relações até com a família, no ano passado. O barulho a deixava agressiva e contatos visuais mais intensos eram desconfortáveis. Na infância, foi alvo de bullying e reverberava no seu dia a dia o rótulo de que era uma filha rebelde e geniosa. Depois de se debruçar no diagnóstico de distúrbio do processamento auditivo central do filho de 8 anos — algo que pode acometer pessoas com TEA —, veio seu próprio diagnóstico. “Na minha vida, senti tudo que o autismo mostra, só não sabia o nome”, diz. “Não foi fácil descobrir, mas abracei e aceitei o que sou.”
![Lucelmo-Benício2.jpg EM FAMÍLIA - Investigação: Lucelmo Lacerda e outros seis parentes descobriram autismo; filho foi o primeiro](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/Lucelmo-Beni%CC%81cio2.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
A descoberta de Vanessa, que também é mãe de uma jovem de 18 anos, ajuda a abrir uma avenida de boas possibilidades: a de que, no futuro, as pessoas sejam mais empáticas e respeitosas com as diferenças — ou, para usar uma expressão em alta, com a neurodiversidade. “As crianças estão mais evoluídas do que os adultos, meus filhos receberam meu diagnóstico com amor e carinho”, conta ela.
O autismo em si não é doença, e costuma ser dividido em três níveis, de acordo com a necessidade de suporte e as manifestações cognitivas, sensoriais e afetivas que se encaixam no espectro. Durante muito tempo, porém, apenas indivíduos com características mais demarcadas recebiam o diagnóstico. Com o conhecimento e a conscientização a respeito, tudo mudou. E aí se vê o tal “boom” de novos casos. Enquanto o primeiro estudo epidemiológico sobre o tema calculava que a prevalência fosse de 4 a cada 10 000 pessoas, hoje se estima que 1 em cada 59 tenha autismo. “Há uma revolução neurodivergente em curso”, diz o psiquiatra Alexandre Valverde, referência nacional no tema e também ele parte do espectro.
![van3 (9).jpg COMPREENSÃO - A artista plástica Vanessa Meyer: aceitação do passado e visão de mais respeito para o futuro](https://veja.abril.com.br/wp-content/uploads/2023/08/van3-9.jpg.jpg?quality=90&strip=info&w=1024&crop=1)
O compartilhamento de informações sobre o assunto entre pais e mães com filhos autistas tem auxiliado essa comunidade a enfrentar os percalços para entender e mesmo detectar a condição. Nessa rede, está o doutor em educação Lucelmo Lacerda, que se transformou em um ativista nas mídias sociais depois de idas e vindas no tratamento de seu filho Benício, diagnosticado aos 3 anos, em 2011. Com o trabalho de divulgação científica e as consultas médicas, veio a confirmação de que ele também apresenta TEA — e a investigação confirmou o quadro para seu irmão, dois primos e dois sobrinhos. “Essa descoberta promoveu um envolvimento de outro nível com esse que, agora, é o debate da minha vida”, afirma. E de muitas outras. Depois de seis meses de avaliação, a deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP) recebeu o laudo que a pôs dentro do espectro do autismo, bandeira que agarrou após o diagnóstico do filho. Para ela, foi um alento: “Quando se diagnostica a criança, ela vai ter mais autonomia no futuro. Quando se diagnostica o adulto, você cura o passado”. Que assim seja.
Publicado em VEJA de 18 de agosto de 2023, edição nº 2855