Na história das pequenas vitórias contra o alcoolismo, um médico e seu relato de empenho contra a dependência, transportado para um livro de sucesso global, O Fim do Meu Vício, de 2010, são incontornáveis. O cardiologista francês Olivier Ameisen (1953-2013), de brilhante carreira na Universidade Cornell, em Nova York, teve de interrompê-la por causa do excesso de bebida. Como nas mais belas aventuras da medicina, ele encontrou uma estrada para a recuperação de modo acidental. Ameisen sofria de espasmos musculares, que tratava com 5 miligramas diárias de baclofeno, um relaxante muscular barato. Ao perceber que o remédio o fazia perder a vontade de abrir garrafas, experimentou doses cada vez mais altas, até alcançar um nível elevado o suficiente (270 miligramas) para controlar a quantidade de drinques. “Comecei a dormir como um bebê e o impulso de beber diminuiu”, escreveu. Ao morrer de infarto, cinco anos depois de revelar ao mundo a descoberta, ele assegurava ter vencido o humilhante fantasma: “Tornei-me completamente indiferente ao álcool. Posso tomar uma bebida ou duas, e nada acontece”.
Seu legado, decisivo: o uso do baclofeno contra o alcoolismo em todo o mundo, inclusive no Brasil — em exemplo de tratamento chamado no meio científico de off-label, ou fora do rótulo, em tradução livre do inglês. Por esse mecanismo, as drogas são utilizadas em terapias para as quais não foram inicialmente imaginadas. Assim caminhava o baclofeno, até sofrer sério revés na França, há três semanas. Ministrado oficialmente entre franceses desde 2014, ele teve a comercialização suspensa. A decisão foi de um tribunal de Justiça que apontou preocupações sobre os riscos colaterais. Uma revisão feita com doze estudos por uma instituição internacional que se dedica à análise de pesquisas mostrou que doses exageradas de baclofeno estariam associadas a um número maior de mortes em relação a outros remédios para combater o vício. E mais: doses baixas, em comparação com o placebo, não fariam diferença. Houve ruidosa celeuma e espanto, porque a substância sempre foi tratada pelos adictos como uma janela de esperança.
O baclofeno age no cérebro em neurotransmissores chamados GABA, aqueles ligados ao controle da ansiedade. É ali que o álcool atua, relaxando o indivíduo. O remédio entraria nesses canais e produziria efeito similar. Essa foi a suposição de Ameisen, sempre controversa, e que só ganharia verniz de certeza após um estudo divulgado em 2016. O trabalho, patrocinado por uma entidade respeitada, a Assistência a Hospitais Públicos de Paris, mostrou efeito positivo depois de um ano de tratamento com a droga. A pesquisa incluiu 320 pacientes entre 18 e 65 anos, alcoólatras, que não foram orientados a parar de beber. Resultado: a abstinência ou a redução do consumo ocorreu em 56,8% dos pacientes tratados, contra 36,5% daqueles que receberam o placebo. Mas outros efeitos do remédio não foram ideais: 44% deles sofreram de insônia e depressão — o mesmo ocorreu com 31% dos que não tomaram o medicamento.
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Clique e AssineO recuo em torno da indicação do baclofeno é um golpe nas possibilidades de controle de uma doença ainda enigmática. Cabe nos dedos de uma mão a quantidade de medicamentos com efeito contra o desejo de ingerir álcool, a maioria frágil e com vaivém nas indicações (como ocorre agora com o composto antiespasmódico). O hábito de beber é mais difícil de controlar do que o da dependência de cocaína e cigarro. Diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, coordenador da Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas, uma das maiores autoridades sobre o assunto no Brasil: “A bebida tem ação cerebral difusa e, por isso, dificilmente um único tipo de tratamento conseguiu até hoje ter o sucesso esperado”. Por esse motivo, Ameisen, em seu best-seller, ao divulgar as benesses do baclofeno agora posto no acostamento, celebrava cada pequeno passo como se fosse um gigantesco salto. Assim: “Apesar de beber não estar nos meus planos daquela noite, eu me senti insultado quando o mordomo de Jeff ofereceu alguns tipos de chá. ‘Por que, a essa hora, não me ofereceu também alguma bebida alcoólica?’, pensei. ‘Será que ele está me mandando um recadinho de repreensão?’ Pedi e bebi um copo de uísque; depois fiz da minha recusa à segunda dose um verdadeiro acontecimento”.
Publicado em VEJA de 15 de julho de 2020, edição nº 2695