Um estudo inédito da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) revelou um panorama alarmante sobre o uso de antibióticos no Brasil. Entre os 375 entrevistados, 24,5% admitiram ter se automedicado com antibióticos ao menos uma vez no último ano, enquanto 45,2% disseram ter acesso a esses medicamentos sem prescrição médica. Esses dados reforçam um comportamento que favorece o aumento da resistência bacteriana, uma das maiores ameaças à saúde pública global.
O levantamento apontou que 62,4% das pessoas que se automedicaram usaram antibióticos para tratar dor de garganta, enquanto 26,8% recorreram ao medicamento para resfriados e gripes, que na maioria das vezes não necessitam desse tipo de intervenção. Problemas como dor muscular (13,4%) também foram relatados como motivo de automedicação, indicando um uso amplamente inadequado.
“Estamos lidando com a ideia equivocada de que antibióticos são uma solução universal para problemas de saúde”, destacou Ana Cristina Gales, infectologista e coordenadora do Comitê de Resistência Bacteriana da SBI. Ela pontuou que a desinformação é um dos grandes desafios: 37% dos entrevistados acreditam, erroneamente, que esses medicamentos combatem vírus, fungos ou parasitas.
Além disso, 55,5% desconhecem que o uso inadequado pode levar à resistência bacteriana. “Toda vez que usamos antibióticos, estamos selecionando as bactérias mais resistentes, que já existem naturalmente no ambiente. O problema não é criar uma nova resistência, mas favorecer as mais perigosas”, explicou Gales.
Ameaça global crescente
A resistência antimicrobiana é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma das dez maiores ameaças à saúde pública. Sem ações imediatas, 10 milhões de mortes anuais serão atribuídas ao problema até 2050, superando o número de mortes por câncer. “A resistência compromete tratamentos médicos fundamentais, como quimioterapias e grandes cirurgias. Esses avanços se tornam inseguros sem antibióticos eficazes”, explica Gales.
Para enfrentar o problema, Gales defendeu a necessidade de uma abordagem ampla: “Precisamos de vacinas eficazes, acesso universal a água potável e saneamento, melhorias na higiene e medidas de prevenção e controle de infecções. Somente com uma ação global e coordenada podemos conter essa ameaça.”
Problemas estruturais e ambientais agravam a crise
O estudo revelou que 30% dos brasileiros não seguem à risca as prescrições médicas para uso de antibióticos, e muitos obtêm informações inadequadas de redes sociais ou influenciadores digitais, ao invés de buscar orientação médica.
Além disso, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento mostram que apenas 55% da população brasileira tem acesso à coleta de esgoto, e apenas 71% do esgoto coletado é tratado.
O médico Alberto Chebabo, presidente da SBI, apontou que “a reciclagem de material genético no meio ambiente, alimentada pela falta de saneamento e tratamento inadequado de esgoto, favorece a disseminação de genes de resistência bacteriana, um reflexo direto da negligência estrutural que enfrentamos.”
Chebabo também alertou para o papel da agropecuária na propagação de bactérias resistentes: “O uso indiscriminado de antimicrobianos na produção de alimentos, como frangos e porcos, cria um ciclo perigoso. As bactérias resistentes entram na cadeia alimentar e se espalham, afetando não apenas os consumidores, mas todo o ecossistema.”
Outro ponto crítico é o impacto das mudanças climáticas, que, segundo Chebabo, “agravam a disseminação de patógenos resistentes, criando condições ambientais favoráveis à proliferação desses organismos. A resistência antimicrobiana não é apenas um problema médico, mas também um desafio ambiental e social.”
Campanha busca conscientização
Diante desse cenário, a SBI lançou a campanha “Será que Precisa? Informe-se sobre o uso adequado dos antibióticos”, com o objetivo de educar a população e alinhar práticas mais responsáveis no uso desses medicamentos. A campanha inclui materiais educativos para pacientes e profissionais de saúde, destacando os riscos da automedicação e a importância de seguir prescrições médicas.
“Precisamos reduzir a demanda por antibióticos com medidas que vão desde a educação até mudanças estruturais, como melhorias no saneamento e na gestão ambiental”, afirmou Chebabo. Para ele, a resistência bacteriana “exige engajamento global, mas mudanças começam localmente, com decisões informadas e ações coordenadas.”
Já Ana Gales alerta para o risco de retrocessos: “Sem novas estratégias, corremos o risco de perder décadas de avanços médicos e colocar em xeque o futuro de tratamentos fundamentais.”
Com dados alarmantes que revelam lacunas de conhecimento e práticas inadequadas, a resistência bacteriana se confirma como um dos maiores desafios da saúde pública. O Brasil, assim como o restante do mundo, precisa de ações imediatas e efetivas para evitar um cenário ainda mais preocupante.