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Novas pesquisas alertam para avanço de doenças ligadas a extremos do clima

Pandemias, distúrbios cardiovasculares e traumas psicológicos estão entre os males de saúde. Dá ainda para reverter esse quadro, mas é preciso agir rápido

Por Paula Felix Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Ligia Moraes Atualizado em 3 jun 2024, 16h39 - Publicado em 31 Maio 2024, 06h00

Parecem cenas extraídas do Apocalipse bíblico, mas são dolorosamente reais e suas causas e consequências, já estudadas pela ciência. Ondas sufocantes de calor, chuvas e inundações torrenciais, incêndios florestais indomáveis, enxames de mosquitos propagando vírus, pandemias… O mundo assiste a uma crise que adoece o planeta e coloca em risco a saúde da população. As mudanças climáticas, alimentadas pela mão suja do ser humano movido a combustíveis fósseis, representam cada vez mais um sério problema de saúde pública. O alerta, soado há pelo menos três décadas e tantas vezes ignorado, é traduzido, agora, por uma avalanche de enfermidades decorrentes da situação, que vão de surtos virais a panes mentais e cardiovasculares. A catástrofe das enchentes no Rio Grande do Sul, com mortes e explosão dos casos de leptospirose, infecção bacteriana que resulta da contaminação por urina de animais, é o mais novo capítulo de uma história com repercussões diretas e indiretas, no curto e no longo prazo, no bem-­estar da civilização. É um lembrete desagradável de que a inação cobra o preço com juros.

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O sintoma da preocupação da comunidade médica quanto aos impactos sanitários do aquecimento global vem sendo estampado, nos últimos meses, em dois dos mais respeitados periódicos da área, o The Lancet e o The New England Journal of Medicine. Estudos publicados ali revelam, em tom de urgência, que as alterações ambientais, atreladas à emissão de gases do efeito estufa e à destruição do planeta, abrem caminho ao descontrole de uma lista de patologias agudas e crônicas (veja o quadro). A conclusão: uma Terra mais quente, poluída e refém de eventos climáticos extremos também será um cenário de hospitais lotados e pessoas perdendo qualidade e expectativa de vida.

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Não à toa, na mais recente Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP28), realizada em Dubai, no fim do ano passado, foi estabelecido o emblemático Dia da Saúde, iniciativa voltada para discussões internacionais e que chega com atraso, haja vista o recorde batido em 2023, o ano mais quente da história. Fora os picos de calor superando 40 graus de ambos os lados do Atlântico, registraram-se temperaturas globais, em média, 1,4 grau acima dos níveis pré-industriais. Na ocasião, a Organização Mundial da Saúde (OMS) compartilhou o dado assustador de que uma em cada quatro mortes já podia ter relação com causas ambientais evitáveis, o que corresponde a mais de 250 000 óbitos anuais. São vidas consumidas devido a termômetros no pico, mas também ao comprometimento do solo e da água, à insegurança alimentar, a infecções e falta de abrigo. “Há muito tempo, os cientistas entendem que o ambiente e a sociedade interferem no controle ou aparecimento de doenças, mas agora estamos vivendo um fenômeno sem igual”, diz o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP. “Com o aquecimento global, aumentam até os casos de infarto e parto prematuro.”

INFERNO - Temperaturas altas: maior risco de partos prematuros, ansiedade e acidente vascular cerebral (AVC)
INFERNO – Temperaturas altas: maior risco de partos prematuros, ansiedade e acidente vascular cerebral (AVC) (Domenico Stinellis/AP Photo/Imageplus)
COLAPSO - O calorão fora do comum na Índia, na semana passada: hospitais lotados
COLAPSO – O calorão fora do comum na Índia, na semana passada: hospitais lotados (Arun Sankar/AFP)

Não é o fim dos tempos, evidentemente não, e o zelo pode vir a conter os danos que batem à janela. Mas um olhar retrospectivo recente é crucial. O entrelaçamento entre saúde ambiental e humana ganhou uma nova dimensão, sentida no dia a dia da população, com a maior crise sanitária dos últimos 100 anos, a pandemia de covid-19. Ela concretizou a ideia, proposta há décadas, de que, com a invasão e degeneração de hábitats, o contato inadvertido entre animais e homens pode propagar microrganismos capazes de saltar entre espécies. Eis o embrião de uma pandemia, acelerada pela propagação do vírus nos voos intercontinentais. Sob a mesma lógica, a ascensão térmica favorece a multiplicação de mosquitos que dispersam moléstias como a dengue, doença que bateu recorde no Brasil em 2024, com mais de 5,4 milhões de casos e 3 200 mortes, e motivou até a criação de hospitais de campanha.

FORÇA DA NATUREZA - O deslizamento de terra em Papua-Nova Guiné, na Oceania: 2 000 mortos
FORÇA DA NATUREZA - O deslizamento de terra em Papua-Nova Guiné, na Oceania: 2 000 mortos (Steven Kandai/AFP)

Os problemas de matriz climática ainda escancaram o risco de reaparecimento de males que, com o tempo, pareciam derrotados, dado o avanço da vacinação e o saneamento básico. Com 95% de seus municípios afetados por tempestades, o Rio Grande do Sul é de fato um caso emblemático: os alagamentos e deslizamentos, responsáveis até agora por mais de 160 mortes e pelo menos 580 000 desalojados, deixaram a população vulnerável ao contato com água contaminada. A leptospirose, reafirme-se, alcançou mais de 140 pessoas, com sete mortes, até a semana passada, mas há outros constrangedores fossos. Entre os quase 50 000 cidadãos vivendo em abrigos, a corrida é para evitar doenças com diferentes níveis de gravidade. Sarna, febre tifoide, hepatite A, gripe, covid-19, diarreias, raiva e tétano são algumas delas. O estresse pós-traumático, a depressão e outras feridas mentais já demandam atendimento psicológico por teleconsulta, em decorrência das dificuldades de circulação em áreas destruídas pelas cheias.

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DESCASO COM O MOSQUITO - Improviso: Brasil soma 5,4 milhões de casos de dengue em 2024
DESCASO COM O MOSQUITO - Improviso: Brasil soma 5,4 milhões de casos de dengue em 2024 (Sandro Araújo/Agência Saúde DF//)

Muito além dos eventos de fúria climática, como no dilúvio gaúcho ou no deslizamento de terra na Papua-Nova Guiné, na Oceania, que matou mais de 2 000 pessoas na semana passada, a exposição ao aumento gradual ou drástico de temperatura, insista-se, é o que particularmente tira o sono dos pesquisadores — e, convém dizer, já existem trabalhos ligando o fenômeno a noites de insônia. O perigo começaria, na realidade, ainda no ventre materno. Foi o que demonstrou um estudo robusto recém-publicado por uma equipe da Universidade Harvard, nos EUA. A análise de 55 milhões de nascimentos identificou íntima relação entre o calor extremo e episódios de parto prematuro, baixo peso ao nascer, anomalias cardíacas e faciais, além de morte fetal. Nesse sentido, os efeitos deletérios das altas temperaturas atravessam a vida e prejudicam o envelhecimento, elevando as taxas de doenças mentais, suicídio e óbitos precoces particularmente entre os idosos — basta recordar que a intensa onda de calor que atingiu a Europa em 2022 deixou um rastro de 61 000 mortes e que a atual estiagem na Índia tem lotado hospitais. Ao que tudo indica, tanto o sistema circulatório como o nervoso se ressentem dos rompantes nos termômetros. Uma nova investigação do University College London conecta os descompassos climáticos à maior incidência de manifestações neurológicas, como acidente vascular cerebral (AVC), epilepsia e esclerose múltipla.

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A apreensão é tamanha que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos EUA, lançaram em abril uma ferramenta que fornece uma previsão de calor de sete dias em todo o país, permitindo que as pessoas saibam quando as temperaturas podem atingir níveis que representem ameaça à saúde. Tecnologias do gênero seriam bem-vindas ao Brasil, que, de acordo com um recente relatório internacional, teve 66 dias de temperaturas extremas devido às mudanças climáticas nos últimos doze meses. Os efeitos colaterais das metamorfoses ambientais, claro, não se limitam ao desajuste térmico. Pesquisas divulgadas no New England atestam, por exemplo, que os combustíveis fósseis, aqueles que nutrem o efeito estufa, também podem interferir no equilíbrio hormonal, ampliando a suscetibilidade a infertilidade e câncer. Outro estudo que causou barulho na mesma publicação endossa o potencial do aquecimento global de criar ambientes altamente propícios à proliferação de vetores de doenças infecciosas. Antes confinadas a algumas regiões do globo, agora dengue e malária já atravessam fronteiras e ameaçam a França e os EUA, respectivamente.

COBRANÇA - Engajamento dos jovens: onda que, felizmente, move o mundo para a frente
COBRANÇA - Engajamento dos jovens: onda que, felizmente, move o mundo para a frente (Alain Pitton/Getty Images)

Em conjunto, as nações têm apresentado propostas para reverter um futuro que dá indícios de ser tenebroso. No entanto, por mais que existam iniciativas como o Acordo de Paris, firmado em 2015 com a meta de limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 grau, há fortes indícios de que as ideias e medidas tomadas até aqui terão pouca efetividade. Especialistas calculam que, nesse ritmo, é provável que atinjamos a casa de 2 graus em 2050, o que acarretaria um aumento de 370% nas mortes relacionadas ao calor, de acordo com projeções do The Lancet.

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PREVENIR É MELHOR... - Proteção coletiva: vacinação em dia evita surtos diante de tragédias ambientais e sociais, que não param de crescer
PREVENIR É MELHOR… – Proteção coletiva: vacinação em dia evita surtos diante de tragédias ambientais e sociais, que não param de crescer (Rivaldo Gomes/Folhapress//)

Impactado por catástrofes e epidemias, o Brasil pode dar o exemplo ao restringir as emissões de gases do efeito estufa zerando o desmatamento da Floresta Amazônica até 2030, conforme se comprometeu dentro de suas obrigações no Acordo. “O país tem de aproveitar essa oportunidade e implementar políticas que recuperem as áreas degradadas em todos os biomas”, diz o físico Paulo Artaxo, do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC). “Precisamos pensar na população, não em interesses de indústrias e negócios específicos.” Outra inspiração vem da União Europeia, que, por meio de seu Acordo Verde, se propõe a acabar com as emissões até 2050 e tem a ambição de tornar o continente pioneiro como território climaticamente neutro. No Japão, o mesmo objetivo foi traçado em 2020 e o movimento se lança aos setores energético e industrial. O êxito desses planos depende, em parte, do engajamento da juventude, que felizmente ocorre com estardalhaço e move o mundo para a frente. “Não adianta falar em carro elétrico se a energia vem do carvão e não se preserva a biodiversidade”, afirma o epidemiologista Vanderson Sampaio, do Instituto Todos pela Saúde (ITpS). A única saída para o impasse climático e sanitário é aderir, não só na teoria, ao conceito de One Health, que encara a saúde humana como indissociável da animal e da planetária. Ainda há tempo para nos salvarmos de um futuro apocalíptico — mas é preciso correr.

Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895

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