Toda vez que um governo imprime mais dinheiro do que a economia do país comporta, a inflação aumenta de um lado e o valor da cédula despenca do outro. Resultado: pilhas de notas para comprar coisas mínimas, situação famosamente retratada em imagens da Alemanha entreguerras, em que as pessoas iam às compras levando carrinhos de mão cheios de dinheiro. Na crise surreal por que passa a Venezuela, entretanto, até essa verdade é relativa. A hiperinflação, que deve chegar a 1 000 000% neste ano, desvalorizou as notas de bolívar, como era de esperar. Mas a falta de papel em geral, e de papel-moeda em particular, tirou-as de circulação. Nos caixas eletrônicos, quase nunca há dinheiro disponível. Nas calçadas de Caracas os bachaqueros, ou camelôs, vendem dinheiro em espécie, via transferência, pelo dobro do valor de face. O metrô não cobra passagem desde maio, por falta de troco e de tíquetes.
Nos últimos seis anos, a porcentagem de notas de bolívar no montante de dinheiro em circulação caiu de 27% para 3%. A desvalorização favorece o artesanato por vias tortas: na fronteira com a Colômbia, refugiados de posse de cédulas sem valor as usam como matéria-prima para a confecção de bolsas. Nesse contexto, as transferências bancárias vêm sendo a saída para pagar e receber — e aí o presidente Nicolás Maduro encontrou mais uma ferramenta de controle da vida dos venezuelanos. O governo vem usando a plataforma digital para beneficiar os integrantes de sua base de apoio, estimada em 3 milhões de pessoas, em uma população de 31 milhões.
Em janeiro de 2017, o presidente lançou o “cartão da pátria”, que identifica o cidadão que o possui com um código QR. Trata-se de um documento indispensável para providências básicas, como pedir empréstimo ao banco, ser atendido no hospital, pleitear moradia e até receber a cesta básica, uma caixa de papelão com alimentos produzidos em boa parte no México. Na segunda-feira 13, Maduro anunciou mais uma utilidade do cartão: a compra de gasolina subsidiada é exclusiva de seus detentores. O problema é que os cartões só foram distribuídos aos venezuelanos que compareceram a postos de atendimento temporários instalados em bairros escolhidos a dedo. Há cerca de um ano, os últimos postos foram fechados e não há mais como obter o cartão — sem falar na parcela da população que nem se deu ao trabalho de solicitar o seu, por não querer submeter-se ao controle implícito do governo. “Maduro dividiu o país em dois, como se tivéssemos duas moedas em circulação. Ele usa a economia como um instrumento de discriminação política”, critica o economista venezuelano Oscar Torrealba, diretor da consultoria Opuntia Economists, em Caracas.
Nas dezenas de datas comemorativas inventadas pelo chavismo, Maduro costuma distribuir bônus que são creditados diretamente nos cartões da pátria. Só que é preciso correr — quando o dinheiro chega, a hiperinflação já lhe corroeu quase todo o valor. Em meados de julho, ele anunciou que daria 10 milhões de bolívares a cada policial para incentivar o comprometimento da tropa. Com essa quantia, equivalente a 3 dólares, não dá para comprar mais do que 1 litro de refrigerante. Apelando para o recurso clássico dos países de moeda desvalorizada, do qual o Brasil também abusou em seus tempos de inflação nas alturas, o governo Maduro deve introduzir, na segunda-feira 20, uma nova moeda, o bolívar soberano. Sua estreia estava prevista para junho, quando a proposta era cortar três zeros. Como a entrega das cédulas foi atrasada em dois meses, os zeros a ser extintos aumentaram — agora serão cinco. Parte das novas cédulas está sendo produzida pela Casa da Moeda do Brasil. Os dias de desgraça da Venezuela, a caminho do precipício, agora sem dinheiro, parecem não ter fim.
Publicado em VEJA de 22 de agosto de 2018, edição nº 2596