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Uma cultura que mata

A indústria do fitness perdeu o rumo. Não dá para aceitar um método de treinamento que leva os alunos a desmaiar em uma sessão de ginástica

Por Nuno Cobra Junior*
Atualizado em 31 ago 2018, 07h00 - Publicado em 31 ago 2018, 07h00

Que cultura é essa que inventa dietas da moda, enriquece seus criadores e, a longo prazo, engorda ainda mais quem as segue? Que cultura é responsável por destruir vidas, de levar pessoas à morte porque pararam de comer? Que cultura é essa, enfim, que faz você odiar o próprio corpo? Qual mentalidade reprime o apetite e, ainda por cima, cria oportunidade para a indústria farmacêutica faturar bilhões de dólares vendendo inibidores de apetite? Que distorção leva a máquina americana do consumo a inventar métodos de treinamento que torturam e lesionam os alunos na academia? Como um médico do gabarito do “Dr. Bumbum” pode ter meio milhão de seguidores nas redes sociais? Que método insano de treinamento leva os alunos a desmaiar ou vomitar em uma sessão de ginástica? A lista de perguntas e respostas preenche centenas de páginas de um estudo que durou doze anos e resultou num manifesto — o “manifesto em defesa do corpo”. Essa cultura misteriosa, tão danosa, é a cultura do corpo em forma. Ou seria em fôrma? É um modelo autoritário aceito como padrão de beleza ideal.

A indústria do fitness nasceu com a missão de cuidar da saúde, mas, devido a interesses comerciais e mercadológicos, perdeu o rumo. Imagine uma cesta de maçãs em que uma fruta podre começa a contaminar todas as outras. Atualmente, grande parte dessa cesta já está contaminada e, quanto mais tempo demorarmos para encarar essa realidade, mais letal se tornará esse processo. Afinal, como viemos parar aqui? Como a indústria do corpo se tornou uma grave questão de saúde pública? Vou tentar espremer doze anos de estudo em algumas linhas. De início, esclareça-se. Não podemos generalizar, pois existem milhões de pessoas que se beneficiam da indústria do fitness, mas mesmo elas devem entender o que fazem, e o que há por trás de um movimento tão hegemônico.

Devido ao fenômeno das academias, grande parte do treino feito no mundo é o que podemos chamar de “treinamento estético”, ou “treinamento cosmético”. Quanto mais pressa na busca do corpo perfeito, mais rápido é o consumo das articulações e cartilagens. Saúde e performance são os dois extremos do treinamento físico. Na realidade, quanto mais nos aproximamos do espectro da performance, menos saudável é o treinamento. Sei de atletas que aos 30 anos já passaram por uma dezena de cirurgias ortopédicas.

Quase tudo o que o grande público conhece como treinamento físico é um modo muito específico de conceber a saúde corporal. Essa visão é contaminada pela herança militar do treinamento e pelo lobby do chamado bodybuilding (culto ao fortalecimento muscular). Os conceitos criados pelos bodybuilders, ou “marombeiros”, como são conhecidos, dominam o ambiente de treinamento. Eles já estavam lá quando a indústria do fitness começou a florescer, na década de 80.

O fast training, nocivo à saúde e à integridade corporal, é contraindicado para mais de 90% da população

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Para os marombeiros, faz sentido sofrer e sentir dor no treinamento se isso se traduz em mais músculos no menor tempo possível. Aqui se encontra o centro da questão, pois esse modelo passou a ser indicado para todo o restante da população. O fast training, a exemplo da fast-food, é igualmente nocivo à saúde e à integridade corporal. Estrategicamente, o corpo foi transformado em um bem de consumo, uma “roupa” que usamos como forma de aumentar o poder de sedução e o status social. O fast training não é indicado para mais de 90% das pessoas, somados os sedentários, obesos, idosos, alunos com sobrepeso ou sem adaptação a esse modelo radical e aqueles que não vão à academia regularmente.

É uma filosofia que causa lesões e enche os consultórios atualmente. A consequência mais comum ao adotar essa estratégia do no pain, no gain (em inglês, se não há dor, não há ganho) é — de acordo com Diego Leite de Barros, fisiologista do Hospital do Coração, em São Paulo — uma lesão ou a desistência da atividade física.

Vemos nas academias, rotineiramente, milhões de jovens entre 14 e 35 anos levantando cargas pesadas, seguindo fórmulas radicais de treinamento, tomando anabolizantes e destruindo de forma precoce a própria coluna e articulações. Tudo isso para estar em conformidade com o padrão de beleza vendido pela indústria do fitness. Pouco se fala a respeito do impacto que o treinamento de alta intensidade provoca em nosso organismo. O fast training implica efeitos colaterais, como aumento dos radicais livres, envelhecimento precoce, riscos cardíacos, lesões ortopédicas, elevação de hormônios ligados ao stress, entre eles cortisol, e uma ação depressora sobre o sistema imunológico, além de ter outras contraindicações, já bem relatadas e comprovadas em diversos estudos.

Hoje, podemos afirmar com convicção que praticar o fast training vai contra os princípios mais básicos da saúde corporal. O melhor exercício não é aquele que queima mais calorias, mas aquele que você gosta de fazer. Esse, sim, vai dar resultado. O salto essencial é desenvolver uma relação de prazer com a atividade corporal. Como isso seria possível com o enorme desconforto e o sofrimento físico vividos no modelo atual? Para ser efetiva, a atividade física deve ser incorporada à rotina. Esse é o segredo. Se tal prática for prazerosa, lúdica e equilibrada, o desafio será muito mais acessível e convidativo para uma grande parcela da população. É bom ressaltar, porém, que não existem vilões; somos vítimas e, ao mesmo tempo, mantenedores da cultura do corpo ideal.

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O primeiro registro histórico do treinamento físico remonta a 3000 a.C., quando o lendário imperador chinês Hoong-Ti teria percebido que preparar seu exército seria uma vantagem estratégica. O treino corporal nasceu, portanto, como uma prática militar, e esses conceitos fundaram a própria escola da educação física no mundo. Não é fácil mudar algo que se mantém dominante há 5 000 anos. Só com a união de todos — academias, professores, mercado, imprensa e campanhas consistentes — poderemos transformar essa cultura.

Para ajudar a alterar esse cenário, redigi um manifesto, disponível no site nunocobrajr.com.br. Nele, há a explicação, em detalhes, de como surgiu a indústria do corpo e qual o seu impacto na saúde pública. Não podemos apoiar uma cultura nociva. Mas existe luz no caminho. Depois de 34 anos de envolvimento com a educação no campo da preparação física — luta que começou há 65 anos, com meu pai, Nuno Cobra —, não receio dizer que, com o tempo, a saúde e o prazer vão se sobrepor à dor e, insisto, à cultura que mata.

Recentemente recebi mensagem de uma enfermeira, Nilza Assad, com um comentário singelo que me emocionou. Foi como uma carta de alforria contra o abusivo marketing de consumo do corpo em forma. Ela escreveu: “Já li, reli e estou relendo novamente o seu manifesto… Não me canso de absorver tudo o que você escreveu. Sensacional! Estou me aceitando e aceitando meu corpo desde então… Mil vezes obrigada por seus esclarecimentos!”.

* Nuno Cobra Junior é preparador físico e consultor em treinamento corporal

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Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598

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