Especialista em urbanismo, Priscila Gama, de 34 anos, ficou revoltada e indignada durante o auge da campanha #MeuPrimeiroAssédio, que no fim de 2015 incentivou mulheres a expor nas redes sociais relatos de assédio sexual. “Percebi que muitas das histórias tinham a ver com mobilidade, com mulheres que estavam sozinhas no momento em que o abuso aconteceu. E passei a pensar em como resolver essa questão. Foi quando tive a ideia de um aplicativo que funcionasse como uma companhia virtual”, diz a arquiteta, uma das três finalistas do Prêmio VEJA-se na categoria Diversidade. Em dezembro daquele ano, seu projeto conquistou o segundo lugar em um concurso do Startup Weekend BH, promovido por agências de fomento à pesquisa de Minas Gerais. Com isso, sua startup obteve monitoria especializada para se desenvolver e progredir. Assim surgiu o aplicativo Malalai, destinado a ajudar as mulheres a enfrentar a insegurança das ruas.
Superando a introspecção que a acompanhava desde a adolescência, Priscila conquistou os jurados com a seguinte provocação: “Sabe aquela mensagem ‘avisa quando chegar’? Pois é, quem vai avisar se você não chegar?”. Em seguida, ela lembrou que, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), a cada onze minutos uma mulher é vítima de estupro no Brasil. Com o nome Malalai (inspirado em Malala, a jovem paquistanesa que ganhou o Nobel da Paz em 2014 por sua luta pelo direito das mulheres à educação), a startup é tocada por ela e seu sócio, Henrique Mendes. O principal produto da Malalai é um aplicativo de celular, disponível por enquanto apenas para Android, que pretende combater a violência investindo em três vertentes.
A primeira, de ação preventiva, é o mapeamento de rotas mais seguras para as mulheres que andam a pé nas cidades, com base em critérios como iluminação pública, existência de comércio aberto e de postos policiais, entre outros. A segunda tem foco no aumento da sensação de segurança: o recurso de companhia virtual permite que a mulher escolha alguém, via celular, que acompanha sua rota e o tempo de chegada a seu destino. A terceira consiste no impedimento do abuso: o aplicativo tem um botão de emergência que, acionado, envia mensagens de pedido de socorro a três contatos de confiança pré-selecionados. O serviço tem mais de 4 000 usuárias cadastradas. Para complementar o negócio, Priscila está desenvolvendo um anel discreto que permite o uso do botão de emergência de forma mais rápida, via Bluetooth.
Priscila também pretende tornar a startup rentável atuando em uma área que ela conhece bem: dona de um MBA em gestão de projetos imobiliários pela Fundação Getulio Vargas (FGV), a arquiteta acredita que informações compiladas em big data sobre o nível de segurança para as mulheres de cada quarteirão das cidades podem interessar a construtoras e seguradoras. “Queremos ter um negócio social: que a empresa ganhe dinheiro para ser sustentável e gerar algum lucro, mas que se concentre em alcançar seu objetivo de tornar o deslocamento a pé das mulheres mais seguro.” Enquanto isso, ela se divide entre um emprego de meio período como funcionária no Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Minas Gerais (CAU-MG) e participações em eventos, pelos quais não cobra. Pelo ineditismo da iniciativa, a Malalai tornou-se referência na junção de tecnologia, questão de gênero, segurança pública e urbanismo. Priscila participa de cerca de trinta eventos por ano, além de dar monitoria a grupos de desenvolvedoras femininas voltadas para a inovação.
“Mais triste do que existir uma ferramenta como essa é saber que ela é necessária e ninguém fazer nada. Todo mundo sabe que o problema existe e que ele acontece diariamente”
Criada em uma família matriarcal, de mulheres fortes, Priscila tem uma história de provações. Seus pais, que passaram fome na infância, se esforçaram destinando quase todo o orçamento familiar com aluguel para conseguir viver em um bairro de classe média de Divinópolis, onde não dependessem de transporte público para trabalhar e levar os filhos à escola. Diz Priscila, que estudou em uma instituição de ensino particular, com bolsa integral: “Fui vítima de racismo e sofri muito bullying na escola. Acabei ficando retraída”.
Houve outro fator que contribuiu para torná-la introspectiva e desconfiada: ela começou a ser abordada com comentários de teor sexual na rua, na volta da escola, já a partir dos 12 anos. “A mulher negra é hipersexualizada pela sociedade desde cedo”, afirma. Ela conseguiu vencer a timidez graças ao sucesso da Malalai: “Foi um divisor de águas. Existem duas ‘Priscilas’, a de antes e a de depois do aplicativo. Nunca pensei que seria capaz de falar para plateias de mais de 100 pessoas”.
Seu projeto não ficou imune às críticas de parte do movimento feminista, que argumenta que o aplicativo joga nas costas das mulheres a responsabilidade por serem assediadas — ou seja, que cabe a elas escolher o caminho mais seguro para andar sozinhas e não aos homens aprender a respeitálas. “Mais triste do que existir uma ferramenta como essa é saber que ela é necessária e ninguém fazer nada. Todo mundo sabe que o problema existe e que ele acontece diariamente”, defende-se Priscila, que prega um foco maior no estímulo ao respeito por parte dos homens.
“Mais triste do que existir uma ferramenta como essa é saber que ela é necessária e ninguém fazer nada. Todo mundo sabe que o problema existe e que ele acontece diariamente”
Ela se diz cansada de perceber que o mundo das startups é dominado por “homens heterossexuais brancos”. E espera que um dia possa olhar para uma plateia e não ter de constatar que, de 300 pessoas envolvidas em um evento sobre inovação, apenas três são negras, como já ocorreu. Priscila quer que a Malalai vá além da segurança de gênero: “Meu objetivo é que meninas e mulheres acreditem em seus potenciais produtivos”.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589