“Transmiti o recado”
Mensagens escritas comprovam que o coronel Lima atuou como intermediário entre Temer e empresário ligado a negócios suspeitos no Porto de Santos
Investigados no inquérito que apura se houve pagamento de propina na edição de um decreto sobre o setor de portos, o presidente Michel Temer e o coronel João Baptista Lima Filho, amigos há mais de três décadas, declaram-se inocentes e perseguidos por adversários. Temer diz que o cerco judicial ao coronel pretende desestabilizar seu governo, e, por isso, seus assessores ameaçam até pedir o impeachment do relator do caso, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). Já o coronel afirma que nunca recebeu propina e nega ser laranja do presidente — os dois, segundo ele, teriam apenas uma relação de amizade, uma “coisa pura”, sem “outros interesses”.
As mensagens que ilustram esta reportagem comprovam que a relação entre Temer e Lima foi além disso. Mostram como o coronel exerceu — em pelo menos um caso — o papel de intermediário entre Temer e um dos maiores grupos empresariais da área portuária. Revelam que Lima, sem ser funcionário público nem mesmo assessor de Temer, abriu as portas do governo a interesses privados e fez questão de informar o presidente do serviço prestado. O diálogo não traz o desfecho da história, mas o grupo empresarial ajudado pelo coronel teve sua demanda atendida por um apadrinhado de Temer no governo. Coisa na casa do bilhão de reais.
VEJA teve acesso a dez mensagens encontradas no celular do coronel, cujo sigilo telefônico e telemático foi quebrado por decisão do ministro Barroso, conforme revelou na semana passada o jornal O Globo. Nove delas foram trocadas com Gonçalo Borges Torrealba, um dos donos do Grupo Libra, que tem atuação destacada no Porto de Santos, área sob forte influência política de Temer desde o século passado. Durante três dias, o coronel Lima e Torrealba tentam marcar uma audiência para o empresário. Na madrugada de 12 de agosto de 2015, à 0h44, o coronel finalmente dá a boa-nova: “O encontro foi agendado para às 12hs (sic), na Secretaria”. Meia hora depois de confirmar a audiência a Torrealba, o coronel, à 1h13 do mesmo dia 12, informa o então vice-presidente da República: “Transmiti o recado. Encontro marcado para as 12hs (sic)”. O coronel cumprira a sua missão. As mensagens não explicitam qual era a secretaria em questão, mas há uma boa pista à disposição das autoridades. Em junho de 2015, dois meses antes da troca de mensagens entre o coronel Lima, Torrealba e Temer, o Grupo Libra pediu à Secretaria de Portos a prorrogação de seus contratos de concessão no Porto de Santos.
Naquele agosto de 2015, esse pedido continuava sob a análise da área técnica da secretaria. Depois da audiência agendada pelo coronel, o processo deslanchou. Em 3 de setembro de 2015, a Secretaria de Portos finalmente prorrogou os contratos do Grupo Libra por vinte anos, até 2035. A decisão, publicada no Diário Oficial da União, foi assinada pelo então comandante da secretaria, Edinho Araújo, que chegou ao cargo indicado por Temer. Foi a consagração de uma parceria longeva e profícua entre o Grupo Libra e o escrete político comandado pelo atual presidente da República.
A prorrogação dos contratos no Porto de Santos começou a ser semeada em 2013, durante a tramitação da hoje famosa MP dos Portos. O texto original da MP, editado pela então presidente Dilma Rousseff, permitia a prorrogação de contratos de concessão de terminais portuários com uma ressalva importante: só valia para empresas que não tivessem dívidas com a União e se comprometessem a realizar investimentos no setor. Braço-direito de Temer na Câmara, o então líder do PMDB, Eduardo Cunha, hoje preso em Curitiba, apresentou uma emenda para autorizar o governo a prorrogar os contratos mesmo de empresas devedoras. Cunha impunha uma condição módica: bastava que as empresas devedoras aceitassem discutir seus débitos num processo de arbitragem, e não mais na Justiça comum. Foi o pulo do gato.
Com uma dívida estimada atualmente em 2,8 bilhões de reais pelo governo, o Grupo Libra era o sujeito oculto por trás da emenda de Eduardo Cunha — e logo retribuiu a gentileza. Na campanha eleitoral de 2014, Gonçalo Torrealba doou 250 000 reais ao diretório do PMDB do Rio, cujo principal expoente era o próprio Cunha. Outros dois acionistas do Libra doaram 500 000 reais cada um, num total de 1 milhão de reais, à campanha à reeleição do então vice-presidente Michel Temer. A Polícia Federal suspeita que essas doações foram, na verdade, uma contrapartida às vantagens obtidas pelo Grupo Libra na MP dos Portos — suspeita que cresceu depois que agentes federais apreenderam um pen drive num endereço de Eduardo Cunha no qual havia dados do Grupo Libra e referências às suas dificuldades no porto.
Em 2013, quando a MP dos Portos tramitava na Câmara, Eduardo Cunha chegou a levar Gonçalo Torrealba para uma audiência com Temer no Palácio do Jaburu. Por meio de sua assessoria, o presidente confirmou a reunião, que, segundo ele, também contou com a participação de ministros do governo Dilma. Em 2014, com a MP já transformada em lei, o caso ainda não estava inteiramente resolvido a favor do Grupo Libra. Para que a prorrogação do contrato fosse concedida, a burocracia exigia uma autorização expressa da Agência Nacional de Transportes Aquaviários e da Secretaria de Portos. O Libra pediu o benefício em junho de 2015 e, logo em seguida, entrou em cena o coronel Lima, como mostram as mensagens contidas em seu aparelho celular. A intervenção do amigo de Temer rendeu os frutos esperados. Segundo a assessoria do Ministério dos Transportes, o Libra é a única empresa que conseguiu a prorrogação apesar de ter dívidas com a União — antes, discutidas na Justiça; agora, em processo de arbitragem.
A VEJA, Edinho Araújo, hoje prefeito de São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, disse não se lembrar se recebeu o empresário Gonçalo Torrealba em audiência. “Devo ter recebido a direção do Grupo Libra. Eu recebia a todos no meu gabinete, parlamentares, empresários e, principalmente, representantes das áreas técnicas das companhias.” Em sua agenda oficial, às 12 horas do dia 12 de agosto de 2015, consta apenas que Araújo estava ocupado com “reuniões internas” — definição elástica usada para uma autoridade que não tem nada de relevante para fazer ou tem algo de muito relevante a esconder. Em contrapartida à prorrogação de seus contratos, o Grupo Libra assumiu o compromisso de investir 750 milhões de reais. “Como precisamos melhorar os portos e torná-los mais competitivos, não podíamos abrir mão de um investimento desse porte. Segundo os técnicos da Codesp (refere-se à empresa federal que administra o Porto de Santos) e da nossa secretaria, o acordo era o melhor a ser feito pelo Porto de Santos e pelo Brasil”, disse Edinho Araújo. Um mês depois de assinar a decisão favorável ao Grupo Libra, Edinho Araújo foi demitido por Dilma. Em sua notória carta-lamúria enviada à petista, como prenúncio de seu embarque definitivo na nau do impeachment, Temer reclamou do expurgo: “A senhora não teve a menor preocupação em eliminar do governo o deputado Edinho Araújo, deputado de São Paulo a mim ligado”.
As mensagens trocadas pelo coronel Lima com Gonçalo Torrealba são um aperitivo do material que chegará às mãos dos investigadores com a quebra do sigilo telefônico e telemático do coronel. Por decisão do ministro Barroso, os investigadores também terão acesso ao sigilo bancário de Temer, do coronel e de Antonio Celso Grecco, dono da Rodrimar, empresa portuária suspeita de pagar propina para ter seus pleitos atendidos no decreto sobre portos. A pedido da PF, o ministro Barroso incluiu no inquérito uma suspeita antiga e muito semelhante à atual — seja no enredo, seja nos personagens. A suspeita, que veio a público em 2001, nasceu no âmbito de um processo de divórcio, no qual apareceu uma contabilidade de um suposto esquema de propina no Porto de Santos. A contabilidade mostrava que as empresas portuárias pagavam comissões a Michel Temer, ao coronel Lima e ao ex-presidente da Codesp Marcelo Azeredo, indicado ao cargo pelo emedebista. Entre elas estão a Rodrimar (que, supostamente, pagou 600 000 reais ao trio) e o Grupo Libra (1,28 milhão de reais, assim divididos: 640 000 para Temer, 320 000 para o coronel e o mesmo tanto para Azeredo). Todos os citados negam o recebimento desses recursos. Em depoimento à PF, Celso Grecco, da Rodrimar, admitiu que conhece o coronel, que almoçavam ocasionalmente, mas situou a relação no campo da “coisa pura”, sem “outro interesse”.
O coronel caiu no radar dos investigadores depois que um delator da JBS, Ricardo Saud, contou a procuradores que, na campanha de 2014, mandou lhe entregar 1 milhão de reais em dinheiro vivo, “conforme indicação direta e específica de Temer”. Outro empresário, José Antunes Sobrinho, antigo dono da empreiteira Engevix, disse que Lima lhe pediu, também em 2014, 1 milhão de reais para “suprir interesses de Temer”. O achaque teria ocorrido depois que a Engevix, em parceria com uma empresa da qual o coronel é sócio, ganhou contrato de 162 milhões de reais na Eletronuclear, um feudo do MDB. Esses depoimentos sustentam a suspeita de que Lima seja laranja do presidente. Os investigadores ainda não sabem se os acusadores falam a verdade, mas recolheram indícios de que o coronel tinha proximidade com eles. Constam da agenda telefônica do coronel os contatos de Gonçalo Torrealba, Antunes Sobrinho e Celso Grecco, além dos celulares do presidente Temer. Em 2015, ano em que o Grupo Libra finalmente conseguiu a primazia de ser a única empresa devedora da União a prorrogar seus contratos na Secretaria de Portos, Lima trocou 37 mensagens com Gonçalo Torrealba.
Por meio de sua assessoria, Temer disse nunca ter tratado de projetos de interesse do Grupo Libra com o coronel. Lima afirmou que não tem esclarecimentos a prestar sobre o caso. Já Gonçalo Torrealba não quis se manifestar.
A cruzada contra barroso
Ana Clara Costa
Com a sutileza das canhoneiras do século XIX, o Palácio do Planalto abriu fogo contra o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. O governo irritou-se com sua decisão de alterar o generoso indulto natalino do presidente Michel Temer, depois se enfureceu ao saber que ele quebrara o sigilo bancário do presidente e seu entorno e, na semana passada, perdeu a paciência de vez com a divulgação de que o ministro também quebrara o sigilo telefônico e telemático dos amigos de Temer. Carlos Marun, secretário de Governo, mandou às favas a celebrada harmonia entre os poderes e a elegância institucional — aquela que preconiza que “decisão judicial se cumpre” — e ameaçou voltar ao Congresso para pedir o impeachment de Barroso.
A gota d’água para a ofensiva do governo foi a suspensão, pelo magistrado, do indulto natalino decretado por Temer para criminosos de colarinho branco. O governo acusou Barroso de valer-se de um “ímpeto legislador” que ultrapassa suas funções de magistrado — e, mais que isso, disse que o ministro vinha promovendo um ataque direto ao presidente. Os críticos também acusaram Barroso de trabalhar com dois pesos e duas medidas: vetou o indulto que Temer queria conceder aos corruptos de agora, mas aceitou o indulto ao petista José Dirceu em 2016.
Como em toda guerra a primeira vítima é a verdade, tentou-se embaralhar tudo. O indulto a José Dirceu é em tudo diferente do indulto assinado por Temer. Primeiro, não estava sendo questionado judicialmente — e o de Temer está. Segundo, o Ministério Público deu parecer favorável e, no caso do indulto de Temer, o parecer foi contrário. Terceiro, o indulto dado a José Dirceu em 2016 não o retirou da cadeia. Ele permaneceu preso e só foi solto em maio de 2017, graças a um habeas-corpus concedido pela Segunda Turma do STF, da qual Barroso não faz parte. Por fim, o indulto de Temer estava suspenso, o que vinha prejudicando todos os presos. Barroso, ao adotar um critério menos leniente que o de Temer, exigindo o cumprimento de um terço da pena e não de apenas um quinto, restabeleceu o padrão vigente desde 1988 e agregou a ele a exclusão dos criminosos de colarinho branco. Como constitucionalista, Temer entendeu o procedimento. Talvez como presidente da República, não.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574