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Só os pais obedecem

A psicóloga especializada em família Rosely Sayão diz que o medo de perder o amor das crianças faz com que os adultos abdiquem do poder

Por Daniel Bergamasco Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Fabiana Futema Atualizado em 4 jun 2024, 18h09 - Publicado em 29 jul 2017, 06h00
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  • Quando termina suas palestras em alguma escola, a psicóloga Rosely Sayão precisa de ajuda para sair com tranquilidade do prédio — costuma ser cercada por dezenas de pais, cheios de perguntas adicionais às respondidas no palco, a respeito de dilemas na própria casa. Formada pela PUC de Campinas, ela se tornou a mais conhecida referência em questões de família no país. Boa parte da projeção se deve ao trabalho na imprensa, desde que começou a escrever sobre sexo no extinto jornal Notícias Populares, há quase três décadas, e logo depois na Folha de S.Paulo, da qual se despediu há duas semanas, para se dedicar ao público de VEJA — ela assinará uma coluna mensal na revista a partir da próxima edição e apresentará um programa semanal no site em que responderá a questões enviadas pelos internautas, algo semelhante ao que faz na rádio BandNews FM. Aos 67 anos, Rosely vive em um condomínio tranquilo em Sorocaba, a cerca de 100 quilômetros da capital paulista, e mantém-se atuante em consultório e no atendimento a colégios e grupos de pais. Da própria experiência pessoal — é mãe de um casal, de 38 e 42 anos —, a principal conclusão é que os adultos vêm tornando a paternidade mais complicada nas últimas décadas. “Eu trabalhava fora, deixava os dois com a empregada e nunca sentia a menor culpa por isso, como se tornou comum atualmente.” A seguir, sua entrevista.

    Por que há tantas questões sobre como criar um filho? As pessoas perderam a noção do que é uma criança. Se ela pergunta o que há na barriga de uma mulher grávida, podemos dizer apenas: um bebê. As famílias, porém, se cobram tanto que já querem explicar como o bebê entrou, como vai sair, o namoro do papai e da mamãe. Não se dá mais a resposta “quando você crescer, vai entender”, que em geral satisfaz as crianças. Outro sinal da dificuldade de lidar com a infância é que os pequenos têm agenda de adulto, cheia de cursos e responsabilidades.

    Isso pode ter impacto no futuro? O problema é que a chance de brincar com a vida, que não foi aproveitada na infância, vira uma demanda no fim da adolescência. O número de adultos que levantam cedo para acordar o filho, de modo que ele não perca a hora das aulas na faculdade, é absurdo. Se você vai à secretaria de uma universidade no fim do semestre, há mais pais que alunos resolvendo todo tipo de pendência. Anos depois, os jovens chegam ao mercado de trabalho e muitas empresas têm dificuldade de lidar com esse perfil de recém-formado, o adulto que faz birra: só reclama, dá murro na mesa, sapateia.

    Os pais de hoje se cobram em excesso? As mães se culpam muito. Elas tentam oferecer um tempo do qual não dispõem, por compromissos profissionais ou outros motivos. Nem sempre é possível controlar como passaram a noite, se acordaram dispostas, e aí elas forçam demais a barra em busca de uma perfeição que colocaram na cabeça mas não é alcançável.

    A senhora cita o exagero das mães. E os homens? A preocupação é bem menor, nem se compara. O papel deles tem mudado na educação, mas o avanço ainda é pequeno, em geral restrito a alguns grandes centros. Vocês viram essa repercussão sobre o (ator e apresentador do canal pago GNT) Rodrigo Hilbert? Aparece na mídia que ele cozinha, constrói casa na árvore no quintal, e fica todo mundo assombrado. Isso mostra quanto nossa sociedade ainda é machista, que o homem, em regra, é de pouco envolvimento. Surgiram recentemente na internet alguns blogs criados por pais que fazem sucesso por ser algo diferente, já que quase todos os espaços com esses temas são abastecidos por mulheres.

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    A dificuldade em dizer “não” permanece? Em toda palestra que eu dou, há uma pergunta assim na plateia: “Como falar não?”. E eu digo: “Vou ensinar, gente, atenção: você olha nos olhos e diz: ‘Nããão’ ”. Faço essa brincadeira para perceberem quão ridícula é a questão. Os pais hoje têm esse receio enorme de desagradar, um medo de perder o amor dos filhos. Sempre foi o oposto. Era o temor dos pequenos de perder o afeto dos mais velhos que permitia muitas vezes que fossem educados, deixando de fazer várias besteiras. Entendi melhor essa movimentação com os temas do Bauman (o sociólogo polonês Zygmunt Bauman): a fragilidade dos laços afetivos hoje é uma coisa que nos assombra. O ser humano precisa de vínculos razoavelmente estáveis e duradouros, mas nada mais é assim entre nossos pares. Então, estamos jogando sobre os filhos essa expectativa. Com isso, o que temos visto, em geral, são os pais superobedientes. Loucura, não?

    Uma dúvida frequente é sobre quando a criança pode ter o próprio celular. Quando souber usar bem o aparelho como um objeto que permite comunicar-se com quem está a distância, e não com os colegas no mesmo espaço que ela. Não existe uma idade mágica para isso, mas não é antes da adolescência. As crianças aprendem vendo os membros da família usar mal o telefone. Liga-se para as pessoas nos piores horários, com temas que não são urgentes. Conheço uma mãe muito zelosa, com três filhos em diferentes idades, que instituiu o check-in dos celulares: a família toda chega em casa e coloca as traquitanas em uma caixa. Pronto, todos chegaram, ninguém precisa mais do aparelho para se comunicar. Adorei a ideia.

    E o batido argumento de que todo o restante da turma possui o aparelho? A criança diz: “Todo mundo tem celular, menos eu”. Primeiro: nunca é “todo mundo”. Trata-se de um argumento fácil, que pega com os adultos. Segunda coisa: e na adolescência, quando o filho disser o mesmo sobre todos fumarem maconha, como mudar a lógica? Você vai ser obrigado a liberar a maconha porque  “todo mundo” fuma? Temos de ensinar desde cedo que cada família é diferente, algo que deve ser respeitado, mesmo que o filho fique bravo.

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    Os grupos de pais no WhatsApp são um elemento de união ou confusão nas escolas? Se me fossem dados o direito e o poder de tomar uma decisão na vida dos pais, seria esta: parem com esses grupos. São uma fofoca sem fim, adultos falando de crianças. Se o filho leva uma mordida, já dizem que é porque o colega pertence a uma família desestruturada — criança morde porque tem dentes, às vezes porque quer beijar e não sabe como fazer, é algo natural. Além disso, ficam trocando mensagens em que falam o tempo todo mal dos professores, da escola. Cadê a confiança fundamental na instituição para que a educação possa acontecer?

    Não é natural que os clientes questionem o colégio e até queiram trocar impressões negativas sobre ele? Claro, mas isso deveria acontecer lá no espaço pedagógico, onde eles possam ter a visão dos dois lados. Se houve algum problema, vamos dialogar ao lado dos professores, com outros pais, com respeito, ouvindo todos os lados do conflito, em busca de uma solução.

    Os colégios, por outro lado, fogem desses conflitos usando artimanhas como inflar as qualidades dos alunos em reuniões? Sim, muito. A partir dos anos 80, a escola virou uma empresa, com conceitos de satisfação do cliente, fidelização. E aí faz o que os pais querem, quando sua função muitas vezes é o oposto, jogar os filhos para o mundo. Uma situação comum: se há um professor de história que é de esquerda, e não quero que ele dê opiniões em sala de aula porque me identifico mais com a direita, não estou confiando na capacidade do jovem de pensar, de ser crítico, de ter as próprias opiniões.

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    Como escolher um bom colégio? A minha resposta costuma deixar os pais irritados, mas continuo afirmando que as escolas são muito mais parecidas do que imaginam. Muda o aparato de segurança, de informática, mas quase todas são conteudistas, o professor fica falando, o aluno ouvindo, depois estuda em casa. Há alguns pontos, no entanto, que fazem a diferença. Converse com os professores na saída da aula, já fora daquele ambiente controlado, tente perceber se eles se sentem respeitados. E observe o recreio, veja se os alunos trocam ideias, se reúnem, ou se apenas ficam enlouquecidos correndo. Brinco dizendo que um bom teste seria pôr uma velhinha e um bebê no meio do pátio e ver se os dois sobrevivem. Eu mesma já fui muito empurrada em visitas aos intervalos.

    E quanto a critérios objetivos, como a nota média das instituições no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) ou o fato de serem ou não bilíngues? A nota é do estudante, não da escola. O CEP do local em que os matriculados moram acaba sendo mais determinante na nota média, devido à renda, às oportunidades. E em alguns lugares há seleção dos alunos, o que impacta o desempenho. Sobre ser bilíngue, é uma diferença, não necessariamente uma vantagem. Depende da criança: algumas se enrolam com esse duplo aprendizado, especialmente se em casa não se fala esse segundo idioma.

    Como o bullying é tratado hoje pelas escolas e famílias? Se você avaliar todas as perguntas que recebo, vai chegar a uma conclusão incrível: quase todas as crianças sofrem bullying, mas nenhuma o pratica. Quando digo que, muitas vezes, é o mesmo indivíduo quem sofre e pratica bullying, as pessoas ficam assustadíssimas. Um problema diferente é a situação em que os alunos se tornam isolados, excluídos do grupo. A escola deveria interferir nisso, mas em geral não faz nada. Os professores dizem: “Vamos iniciar um trabalho em dupla, escolham seus parceiros”. Sempre ficará alguém de fora. Nesse aspecto, os pais devem rodar a baiana quando percebem o isolamento. Não se pode deixar isso acontecer.

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    Em meio a discussões em alta sobre identidade de gênero, os pais ainda se preocupam quando os meninos gostam de usar maquiagem ou as meninas não se interessam por bonecas? Na verdade, hoje essa questão aparece menos que nos anos 90 e 2000. Digo que infância é infância, a sexualidade se define mais na adolescência. No dia em que conseguirmos entender por que alguém se torna heterossexual poderemos compreender o que faz de outro homossexual. Ninguém sabe. Muitas meninas dizem que gostariam de ser meninos porque acham as brincadeiras deles legais. Por outro lado, as roupas e acessórios femininos são muito mais coloridos que os trajes masculinos, então alguns meninos acham legal estar perto deles.

    Qual a pior reação que se pode ter diante do garoto que pega um batom e se pinta, por exemplo? Levar a sério. Você não pede a uma criança que põe um estetoscópio de brinquedo que ela faça uma cirurgia. Se ela se fantasia de menina ou menino, qual o problema? É uma brincadeira. Não dá para levar a ferro e fogo e chamar demais a atenção para isso.

    Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2017, edição nº 2541

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