Notório pela humildade inquebrantável, São Francisco de Assis (1182-1226) não endossava a opinião que os outros tinham sobre sua aparência. Para os seguidores, o santo que renovou o cristianismo com sua opção radical pelos pobres sintetizaria a pureza da fé nos traços formosos de sua face. Mas Francisco, consciente de seu rosto fino e inexpressivo, autodefinia-se como um “franguinho preto”. A posteridade não avalizou a modéstia franciscana: desde sua morte, na Itália do século XIII, o franguinho tornou-se um poderoso emblema católico, como se atesta em São Francisco de Assis na Arte de Mestres Italianos, que estreia na quarta-feira 8 na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte, e aportará em outubro no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio.
Com vinte obras que vão do quattrocento renascentista às visões estupefacientes do barroco, passando por uma tela de quase 3 metros de altura do mestre da escola veneziana Ticiano Vecellio, o acervo resume a força do santo como inspiração para grandes pintores. Como estima o italiano Stefano Papetti, um dos curadores: “Depois de Cristo e da Virgem, nenhuma figura cristã foi tão celebrada em imagens”. A mostra é a versão ligeiramente reduzida de outra exibida em 2016 em Ascoli Piceno, cidadezinha italiana onde Francisco pregou há oito séculos e em cuja igreja se encontra a obra de Ticiano. A falta de ineditismo não afeta o essencial: quando um conjunto tão estupendo de arte italiana vem ao Brasil, só resta correr para a fila do museu.
A vida simples e a pregação acessível de Francisco sempre fizeram dele um dos santos mais populares, e hoje seu misticismo pé no chão parece ter ganhado atualidade. Não é fortuito que ele dê nome ao papa de turno: Francisco é o santo “antenado” com a galera que professa a militância pela ecologia e pelos direitos dos animais, exercita o desapego por meio de hábitos colaborativos e prega a tolerância. “Seu estilo de vida continua moderno”, diz o curador.
A aura de santo “gente como a gente” se completa com fraquezas e padecimentos humanos. Filho de um comerciante rico, Francisco foi o equivalente medieval do playboy ostentação: esbanjava dinheiro em farras e trajava os últimos babados da moda. A certa altura, porém, os prazeres mundanos perderam o sentido. Em crise existencial, ele penou até a conversão. No momento da ruptura, entregou suas roupas ao pai — que o acusava de torrar a herança com os pobres — e saiu nu em meio a uma multidão. Mais tarde, quando os romanos se mostraram insensíveis à sua pregação, pôs-se a evangelizar pássaros, que se reuniriam só para ouvi-lo — o que espalhou a fama de santo.
As duas cenas foram imortalizadas em afrescos que adornam a Basílica de Assis, onde ele está sepultado. São obras que não saem de suas paredes de origem — mas o espectador brasileiro poderá, como consolo, fazer um tour virtual pela igreja. A riqueza da Basílica de Assis expõe outra razão de sua popularidade: a ordem religiosa que ele criou — a dos frades franciscanos — foi desde sempre sagaz em promover a imagem de seu primeiro líder por meio da arte.
Além do feito de reaproximar a Igreja do povo ao abraçar a “Senhora Pobreza”, Francisco tinha mais um atrativo para a exploração visual: foi o primeiro santo a ostentar os chamados estigmas. Seu corpo, supostamente, carregava as cinco chagas do Cristo crucificado: os cravos nos pés e nas mãos e a ferida no lado direito do tórax. Anunciado após sua morte, o milagre foi visto a princípio com desconfiança, inclusive pelos artistas. “Pintores relutavam em pintar os estigmas e, se os pintavam, logo eram apagados por fiéis desconhecidos”, relata uma biógrafa moderna, Chiara Frugoni (para quem os estigmas seriam sinais de uma das várias doenças que possivelmente o levaram à morte: a hanseníase). Com o tempo, porém, a Igreja deu um jeitinho de condensar os relatos na cena de irresistível pungência em que o santo recebe as marcas de raios disparados por Cristo.
A mostra ilustra três variantes da representação de São Francisco. Ele surge acompanhado de outros santos: na pequena mas singela obra do mestre do século XVI conhecido como Cola dell’Amatrice, está ao lado da Virgem com o Menino Jesus, São Sebastião, São Roque e Santo Antônio. Em outras, há o Francisco sofredor e penitente — tema comum desde seus primeiros retratos até a explosão dramática do barroco, como no dilacerante Êxtase, de Cesare Fracanzano. O motivo mais recorrente são os estigmas. Em um magnífico óleo do também barroco Orazio Gentileschi, Francisco tem seu corpo inerte abraçado por um anjo, igualando-se ao próprio Cristo apeado da cruz. Por fim, há a grande obra do grande Ticiano. Feito pelo pintor aos 80 anos, usando os dedos em lugar de pincéis em alguns pontos, o painel é um milagre da restauração: exames de raios x mostram que por baixo da tinta há buracos causados pelo fogo de velas, fruto de um acidente séculos atrás. Pintor mais careiro de seu tempo, Ticiano cobrou uma nota para fazer a encomenda para um figurão que aparece todo pomposo no lado direito da pintura. Santa ironia: o artista ficou mais rico à custa do pai dos pobres.
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594