Avatar do usuário logado
Usuário
OLÁ, Usuário
Ícone de fechar alerta de notificações
Avatar do usuário logado
Usuário

Usuário

email@usuario.com.br
Oferta Relâmpago: VEJA por apenas 1,99

Salvei o que deu

Biólogo do Museu Nacional, Paulo Buckup, 59 anos, enfrentou as chamas e resgatou parte do acervo

Por Paulo Buckup
7 set 2018, 07h00 • Atualizado em 4 jun 2024, 17h24
  • Estava trabalhando em casa quando soube do incêndio pelas redes sociais. Logo pesquisadores de vários países começaram a disparar mensagens em meu celular. Não tive dúvida: dirigi até o museu, perto de onde moro, para tentar ajudar a salvar o que desse. Quando cheguei, as chamas já tomavam a parte da frente do prédio. Andei em direção aos fundos, área que o fogo ainda não havia alcançado. Vi uma confusão de gente envolta em fumaça: os bombeiros, meio desorganizados e sem reação, não tinham água, equipamento nem, acho, efetivo em número adequado para um incêndio daquela magnitude. Demorou horas até que os carros-pipa aparecessem.

    Entrei no térreo junto com um técnico que conhecia muito bem o acervo. Não foi fácil. Tivemos de arrombar a porta com os pés, usando de força, nos ferindo um pouco, e caminhar no escuro. Uns 10 metros adiante, encontramos os armários que guardavam exemplares únicos de moluscos, referência mundial para a descrição de várias espécies — material insubstituível para a ciência. Arrancamos as gavetas dos trilhos e as levamos para fora. Perdi as contas de quantas vezes entrei e saí do prédio: vinte vezes, talvez mais, por cerca de duas horas. Resgatei ainda computadores com arquivos valiosos sobre a biodiversidade brasileira, localizados em pequenas salas que íamos explorando enquanto havia tempo. O fogo avançava e iluminava todo o museu. Tentei entrar na área da paleontologia, mas aí começaram a despencar fragmentos, alguns em chamas. Achei que poderia cair vidro. Ficou perigoso e tivemos de sair. Não arredei pé da frente do museu, olhando aquele espetáculo triste até as 4 da manhã. Fiz o que pude. Salvei o que deu.

    Mentalmente, havia vivido essa situação muitas vezes. Conhecia as condições precárias do museu, sabia que uma tragédia poderia acontecer. Trabalho em um prédio vizinho, no Departamento de Vertebrados, que também corre sérios riscos, apesar de toda a sua riqueza — são reunidos ali até 2 milhões de animais para pesquisa. Neste último ano, viramos chacota. Professores e funcionários tiveram de comprar do próprio bolso lâmpadas e ainda aprender a substituir luminárias. Dispomos de um sistema de climatização avançadíssimo, com controle central, mas ele não está funcionando por falta de manutenção. Várias vezes fiquei sem saber o que dizer a pais de alunos que trabalhavam no verão em condições absolutamente intoleráveis. O sistema de sprinklers precisa ser acionado manualmente; o alarme não funciona mais.

    Os governantes têm de entender que esse incêndio não levou apenas uma fração do passado — ele atinge em cheio o presente e pode ceifar o futuro de pesquisas de alto valor para o país. Daqui para a frente, espero que o museu seja aos poucos reconstruído, na medida do possível, claro. Foram-se embora registros preciosos da vida brasileira, da cultura e da ciência. Aquele prédio era a sede da Coroa portuguesa, onde o império se instalou e capítulos de nossa história se desenrolaram. Até a semana passada, abrigava um vigoroso centro de produção de conhecimento, com cursos de pós-graduação de excelência. Eu e outros colegas que entraram no prédio em meio ao incêndio fizemos apenas o que dava no pequeno espaço de tempo determinado pelas chamas. Parte do material que sucumbiu ao fogo pertencia a pesquisas de amigos que dedicaram a vida a elas. Vi muitos chorando, como se estivessem em um funeral. A obra de cada um deles estava em jogo. Precisamos garantir as condições para que sigam adiante. Se eu tivesse perdido tudo o que fiz em 24 anos de museu, sinceramente, só voltaria lá para me despedir.

    Depoimento dado a Fernando Molica

    Publicado em VEJA de 12 de setembro de 2018, edição nº 2599

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    OFERTA RELÂMPAGO

    Digital Completo

    A notícia em tempo real na palma da sua mão!
    Chega de esperar! Informação quente, direto da fonte, onde você estiver.
    De: R$ 16,90/mês Apenas R$ 1,99/mês
    RESOLUÇÕES ANO NOVO

    Revista em Casa + Digital Completo

    Receba 4 revistas de Veja no mês, além de todos os benefícios do plano Digital Completo (cada revista sai por menos de R$ 7,50)
    De: R$ 55,90/mês
    A partir de R$ 29,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$23,88, equivalente a R$1,99/mês.