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Rosnar é preciso

Uma fantasia visual japonesa sobre cães exilados do convívio humano num depósito de lixo: 'Ilha dos Cachorros' é um lamento cortante sobre o mundo atual

Por Isabela Boscov Atualizado em 20 jul 2018, 06h00 - Publicado em 20 jul 2018, 06h00

Transportado para a Ilha do Lixo em uma gaiolinha, o cão Spots encara a câmera do diretor Wes Anderson — vale dizer, a plateia — com um olhar de incredulidade e de pânico controlado que é das coisas mais tocantes já obtidas por uma animação. Spots é a vítima inaugural da sanha do prefeito Kobayashi, cujo clã há séculos tenta excluir os cachorros do convívio humano (os Kobayashi adoram gatos). O prefeito da enorme Megasaki achou o pretexto ideal para cumprir a missão: os cães estão contaminados pela gripe canina e pela febre do focinho — que causa espirros frequentes —, e os vírus logo devem infectar os seres humanos. Os cães de Megasaki serão então despejados no arquipélago de dejetos próximo à cidade e deixados à própria sorte. Ou azar, no caso, já que o lugar não oferece água, alimento nem abrigo. Não oferece, sobretudo, consolo aos animais habituados a rações e carinhos — e agora sujeitos à lei darwinista imposta pelos mais mundanos bandos de vira-latas. Antes cães de família, Rex, Boss, King e Duke confabulam com as vozes magnificamente expressivas de Edward Norton, Bill Murray, Bob Balaban e Jeff Goldblum: devem entrar na briga por um saco de lixo de cozinha com o grupo do implacável Chief? Sim, devem — e segue-se uma genial escaramuça de desenho animado, toda poeira e rosnados.

Com Ilha dos Cachorros (Isle of Dogs, Estados Unidos, 2018), já em cartaz no país, Wes Anderson leva a um novo ápice seu cinema — numa curva ascendente perfeita desde O Fantástico Sr. Raposo (2009), Moon­rise King­dom (2012) e O Grande Hotel Budapeste (2014). Combinando animação convencional e stop-motion, o texano Anderson canaliza as miríades de influências da produção visual japonesa em um mundo de beleza inebriante, detalhe enlouquecedor e sentimentos palpitantes e não raro avassaladores. Da ukiyo-e, a gravura em bloco que dominou a pintura japonesa entre os séculos XVI e XIX (a conhecidíssima A Onda, de Hokusai, é usada com grande efeito), ao animê e aos games; dos panfletos ao cinema de Akira Kurosawa (o severo prefeito Kobayashi é moldado no ator preferido dele, Toshiro Mifune); dos mangás e dos filmes de Godzilla às artes caligráficas, não há vertente da criação japonesa que escape ao diretor (incluindo-se a trilha de Alexandre Desplat, fortemente pontuada por tambores taiko). Os personagens humanos falam em japonês, sem legendas (Frances McDormand dá voz a uma tradutora-intérprete), e os cães falam em inglês: aqui é o estranho, o diferente, que quer expelir à força, de seu mundo, aquilo que é familiar ao público. Nem uma vez sequer Anderson explicita a atual crise de divisões culturais e sociais que aflige os Estados Unidos — e, no entanto, Ilha dos Cachorros é o lamento mais cortante que se produziu até aqui sobre esse estado de animosidade.

Para os cães, um sinal de que nem todos em Megasaki os odeiam vem na forma de um aviãozinho em pane que cai sobre a ilha: seu piloto, Atari, é o dono de Spots, e procura por ele desesperadamente. Atari tem 12 anos e é um sobrinho distante do prefeito Kobayashi, que o adotou — por dever, não por afeto — quando os pais do menino morreram. Por isso Spots foi o primeiro cão a ser deportado: para servir de exemplo. Acredita-se, porém, que Spots tenha morrido; certificar-se disso é uma tarefa para um cão habituado ao árduo e ao difícil. Cabe a Chief, assim, guiar Atari. O vira-lata antissocial, que se orgulha de nunca ter necessitado material ou espiritualmente dos humanos, vem com a voz de Bryan Cranston — e, como o Walter White que o ator interpretou na série Breaking Bad, Chief racionaliza seu rancor e sua aversão com eloquência, porque é a si mesmo, antes de tudo, que ele tem de persuadir.

Cada filme de Anderson é um mundo em si próprio, meticulosamente concebido e construído. É um paradoxo: quanto mais ele se aprofunda na invenção, mais seu cinema se liberta e se abre para a plateia, comunicando-se com ela por meio das emoções mais básicas e sinceras. Como, por exemplo, o amor que se apossa de um menino e um cão — um tema clássico que, na fantasia japonesa do diretor, ganha um significado novo e urgente.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592

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