Por muito tempo, a erva conhecida como jambu só provocava desconfiança fora do Norte do país. Uns estranhavam seu amargor; outros implicavam com a sensação de formigamento que a planta causa na boca ao ser mascada em iguarias como o tacacá. O tucupi, mais um ingrediente consumido na região, não despertava menos estranheza. Marcado pelo sabor exótico desse caldo de mandioca-brava, o célebre pato ao tucupi sempre desafiou o paladar dos mortais de outras partes do Brasil. Com a cena musical do Pará, ocorria mais ou menos o mesmo. O.k., o estado produziu uma cantora incontornável na MPB — Fafá de Belém. Mas os gêneros que por décadas movimentaram o mercado local — a guitarrada e o tecnobrega — tendiam a ser encarados como meras curiosidades pitorescas fora de seus limites de origem. No máximo, sua música conquistava o público das classes C, D e E pelo apelo popularesco do brega aparentado do forró da banda Calypso, que estourou há uma década. Pois a música paraense da atualidade mostra que pode bem mais. Assim como os ingredientes culinários do Pará hoje são valorizados por chefs estrelados, seus artistas vêm ganhando prestígio e influência inéditos. Surge, enfim, uma colorida estética do Norte: o pop ao tucupi.
A transmutação qualitativa da música paraense não se deu de repente — ao contrário, é a evolução natural de um processo que começou há mais de vinte anos. Em 1996, a guitarrada — ritmo surgido nos anos 70 que combina carimbó, bolero, iê-iê-iê e sons caribenhos — tomou um banho de loja graças aos esforços de Pio Lobato, então líder do grupo Cravo Carbono. Inspirado pelo sucesso do mangue beat do Recife, o guitarrista deflagrou uma renovação em duas vias: ao mesmo tempo em que promoveu o resgate das raízes regionais, procurou reinventá-las por meio do cruzamento com tendências modernas. Da mesma forma que se fez no movimento recifense encabeçado por Chico Science, os artistas da época adicionaram pop, rock e levadas eletrônicas à música regional paraense. “A difusão do mangue beat foi o tiro que deu partida no jogo”, diz Lobato.
De lá para cá, o pop do Pará tornou-se exuberante, mas seus artistas tinham dificuldade em romper a bolha da projeção local. Só mais recentemente, em 2012, essa situação pareceu a caminho de ser superada: ao ganhar notoriedade na trilha sonora da novela Cheias de Charme, a cantora Gaby Amarantos virou queridinha do pessoal antenado e foi saudada como “a Beyoncé do Pará”. Infelizmente, foi um voo de galinha: ao menos comercialmente, não se confirmaram as grandes expectativas em torno dela.
Gaby continua na luta (um novo disco da cantora está em gestação). Mas agora ela não está só: toda uma geração de conterrâneos na faixa dos 20 e poucos aos 35 anos pede passagem na fila. Ainda que o binômio raízes-modernidade dê o tom geral, a diversidade de propostas atesta a robustez do novo pop amazônico. Há sabores do Pará numa nova MPB, por meio das vozes de Arthur Nogueira, Marisa Brito e Leonardo Pratagy. Seu tempero chegou à cena eletrônica pelas mãos do duo Strobo e do cantor e performer Jaloo. A forte veia dançante da música do estado se faz presente nas canções do guitarrista Felipe Cordeiro, nas festas-baile de Félix Robatto e na surpreendente “tecnoguitarrada” (sim, toda hibridização aqui é possível) propulsionada pelo caçula da guitarra com gosto de jambu, Lucas Estrela, de 26 anos.
Não há, na cena de Belém, antagonismo aparente entre novatos e veteranos, como é tão comum nas trocas de guarda geracionais do rock e do pop. O jovem ás da guitarra Estrela reverencia o veterano Pio Lobato. “Eu tinha uma banda de rock progressivo e experimental. Mudei quando entrei em contato com a guitarrada de Lobato”, diz Estrela. O guitarrista é responsável por Farol, um híbrido da sonoridade do Pará com ritmos eletrônicos. No mundo da guitarrada, também há uma terna história de resgate em família. Felipe Cordeiro, de 35 anos, é filho de Manoel Cordeiro, um dos guitar heroes do brega paraense. A princípio, o filho era adepto do cancioneiro tradicional. “Tocava violão e gostava de Guinga e Aldir Blanc”, diz Cordeiro filho. Em 2011, no entanto, resolveu assumir a tradição familiar com o álbum Kitsch Pop Cult, um apanhado de brega e lambada. Desde então, não parou mais de celebrar a figura do pai. Meses atrás, lançou no mercado o DVD Brea Époque, no qual ilumina o atual cenário paraense com vibrantes performances ao vivo. Os Cordeiro, pai e filho, são atrações do mais recente show de Fafá de Belém, no qual ela retoma o namoro com o brega de sua terra. “Cresci muito como profissional, como artista e pessoa ao conviver com uma pessoa tão intensa como Fafá”, rasga seda o filho.
Felipe Cordeiro diz que gosta de ligar os pontos musicais do seu estado. Suas conexões sempre foram as melhores possíveis. Em seus tempos de MPB tradicional, ele produziu o disco de um jovem cantor e compositor chamado Arthur Nogueira. Mundano, de 2009, virou artigo de colecionador, mas não traduz por inteiro o talento desse jovem artista de 30 anos que Fafá define como um “grande melodista”. Em menos de dez anos de estrada, Nogueira se tornou parceiro de um poeta consagrado como Antonio Cícero: é deles Sem Medo, Nem Esperança, a melhor faixa de Estratosférica (2015), de Gal Costa. Sua obra traz menos regionalismo e mais contemporaneidade. “Não gosto de raízes porque elas se prendem à terra. A origem não pode limitar minha liberdade artística”, diz Nogueira, cujos trabalhos seguintes enveredaram pela música eletrônica. No ano passado, ele lançou Rei Ninguém — que está saindo nesta semana no mercado em formato de vinil. Trata-se de um belo álbum de canções que falam de fins de relacionamento. O regionalismo, segundo o compositor, encontra-se “mais na alma que no repertório do álbum”, que traz desde melodias doces até uma versão de You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go, composição de 1975 de Bob Dylan (virou Vou Ficar Tão Só Se Você Se For). “Não encaro Belém como um lugar no mapa, mas como uma força que me acompanha aonde quer que eu vá, que me aquece e inspira”, divaga.
O lado mais flamejante do pop ao tucupi abraça pautas, ritmos e cores contemporâneos. Cordeiro criou uma canção para homenagear o Chiquita, notória festa LGBT de Belém. A composição caiu nas graças do A Euterpia, grupo local que tinha influências do tropicalismo e da vanguarda paulistana. A banda se dissolveu em 2012, mas a cantora Marisa Brito, de 35 anos, ressurgiu no fim de 2017, em versão solo. “Minhas músicas têm uma estrutura mais pop, letras mais curtas, mais diretas. Sempre gostei da simplicidade”, diz ela. Seu tecladista é o cantor Leonardo Pratagy, outro nome promissor, cujo álbum de estreia, Búfalo, traz melodias melancólicas que lembram o pop inglês.
A música eletrônica paraense ganhou notoriedade com o tecnobrega, versão modernosa do brega do estado com muita bateria eletrônica e vários decibéis acima do tolerável. Agora, artistas como o Strobo e Jaloo dão uma roupagem arojada (e mais sutil) ao baticum eletrônico do Pará. O Strobo é um projeto do guitarrista Leo Chermont e do baterista Arthur Kunz, que professam uma combinação de tecnobrega, guitarrada e música tecno. “A gente quer virar pelo avesso a música de Belém”, diz Chermont. O Strobo entusiasmou uma estrela como Marina Lima, que chamou a dupla para participar do álbum Novas Famílias e a escalou para as suas apresentações. “O Strobo inseriu no meu som atual elementos da música paraense e renovou os timbres eletrônicos de que tanto gosto”, derrete-se a cantora.
Os pop stars paraenses vivem numa eterna ponte aérea São PauloBelém. Se a maioria circula mas não abandona seu estado de origem, Jaloo voou para longe do ninho. Nascido em Castanhal, a 68 quilômetros de Belém, Jaime Melo Jr., de 30 anos, foi tentar a sorte em São Paulo. Ele se iniciou no mundo da música criando remixes para canções de tecnobrega. O codinome artístico veio da junção da primeira e da última sílabas de seu nome e sobrenome. “E coloquei um ‘o’ no final para melhorar as buscas no Google”, explica. Há quatro anos, lançou o EP Insight, que o tornou uma figurinha cultuada. O cantor, que em junho grava seu segundo álbum, faz carreira também no cinema. No filme Paraíso Perdido, de Monique Gardenberg, interpreta uma transexual que vive apimentada cena de sexo com o ator Humberto Carrão. “Quando me chamaram para fazer o filme, eu me lembrei de Cinderela Baiana, de Carla Perez, e achei que não me sairia bem”, diz. Pura modéstia: a sequência quente foi gravada de primeira, sem ensaio. Jaloo é a cara da modernidade à moda paraense: exibe franja e maquiagem de índio mais um visual de aspecto high-tech que lhe confere uma androginia amazônico-cosmopolita. “Ele é uma coisa meio homem, meio mulher, meio cobra, meio Oxumaré”, define Fafá de Belém. Perto dele, quem se impressiona com o jambu?
Publicado em VEJA de 13 de junho de 2018, edição nº 2586