Logo após a Proclamação da República, em 1889, Rui Barbosa aproveitou sua passagem pelo posto de ministro da Fazenda para realizar uma queima de arquivo: a destruição dos registros oficiais sobre a posse de escravos. O objetivo da medida era proteger o Erário contra pedidos de indenização da parte de ex-senhores. O episódio, contudo, daria margem a uma teoria conspiratória que teima em sobreviver: o Brasil branco buscava apagar as marcas de seu perverso sistema escravagista? “Isso é fake news”, diz a historiadora Lilia Schwarcz. O fato de as intenções de Rui Barbosa ainda despertarem controvérsia na era das redes sociais só demonstra como a escravidão e seus desdobramentos continuam sendo uma herança incômoda. No momento dos 130 anos da Lei Áurea, uma exposição monumental em São Paulo bota lenha na fogueira desse debate.
Histórias Afro-Atlânticas é a mais completa retrospectiva sobre o tema já apresentada no país. Oriundo de coleções nacionais e museus estrangeiros como o Metropolitan nova-iorquino e a National Portrait Gallery de Londres, o acervo de 450 itens vai de documentos a pinturas e relíquias das religiões africanas, distribuídos pelo espaço expositivo de duas instituições: o Masp, a partir de sexta 29, e o Instituto Tomie Ohtake, com abertura no dia seguinte. O volume espantoso cobre cinco séculos, da chegada dos primeiros navios negreiros, no século XVI, às lutas do movimento negro contemporâneo. A originalidade da mostra reside, sobretudo, na abrangência: seu epicentro geográfico é o Oceano Atlântico, cujas águas simbolizariam os “fluxos e refluxos” de que falava o fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger (1902-1996) ao definir o intercâmbio forjado pela escravidão entre a África, a Europa e as Américas.
É uma noção abstrata, mas de efeito concreto: o fluxo de africanos escravizados deixou traços comuns em boa parte das ex-colônias europeias da América — e o chamado “comércio das almas” pelas águas do Atlântico também levou influências europeias e americanas à África. Um dos atrativos da exposição é a oportunidade de constatar como a herança africana produziu mazelas sociais similares — e também correspondências estéticas — do Rio Grande do Sul aos Estados Unidos, passando pelas ilhas caribenhas. O Brasil ocupa lugar central: maior país escravagista do continente, recebeu 4,8 milhões de negros, ou quatro de cada dez africanos transformados em cativos ao longo dos séculos. Foi, ainda, o primeiro destino dessa mão de obra forçada e o último a lhe conferir liberdade, em 1888.
Histórias Afro-Atlânticas faz a opção clara de não amenizar os males da escravidão e suas consequências ressonantes até hoje. Tal opção começa no time de curadores: além de Lilia Schwarcz e de uma dupla do Masp, Adriano Pedrosa e Tomás Toledo, foram agregados ao projeto dois especialistas afrodescendentes, os baianos Hélio Menezes e Ayrson Heráclito. Uma das tarefas a que eles se devotam é a desconstrução de imagens romantizadas dos negros e da escravidão produzidas por pintores e gravuristas do passado, que acabaram fixando uma visão branda e até positiva do cativeiro.
As gravuras do francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) são talvez o exemplo máximo de distorção da realidade. Debret registrou com suposta precisão naturalista os negros das cidades e zonas rurais do Brasil, bem como seus costumes e, sim, os castigos físicos que sofriam. “Pouca gente se dá conta de que Debret fazia esse trabalho com o intuito de obter um passaporte para a academia francesa e sob as bênçãos do Império brasileiro”, diz Lilia. O resultado é uma visão suavizada mesmo da tortura. Em apenas um par de suas tantas gravuras — ambas presentes na mostra —, Debret expôs a violência sem filtros. Não deu outra: as imagens foram censuradas na época.
Não é só o Brasil escravocrata que ganha retratos benévolos. Outros pintores-viajantes, como o italiano Agostino Brunias (1730-1796), reproduziram negros imersos em doce atmosfera bucólica nas sociedades escravocratas do Caribe e dos Estados Unidos. A ideia da superioridade europeia também rendeu quadros irrealistas, embora lindíssimos: é o caso de uma imponente cena do pintor inglês Thomas Jones Barker (1815-1882) que mostra a rainha Vitória entregando uma Bíblia a um dignatário negro ricamente vestido — mas de joelhos. A seu lado, na exposição, há uma estátua africana que apresenta a mesma rainha Vitória como um orixá. É a prova de que a tal “apropriação cultural” tem vertentes insólitas.
Quando se adentra o século XX, ocorre uma inversão irônica: no lugar dos registros preconceituosos ou inverossímeis, explodem a afirmação negra e o ataque ao racismo. Os negros passam a ser pintados por seus semelhantes, que denunciam a violência policial no Brasil e nos Estados Unidos. Celebram-se os Panteras Negras e o feminismo, como no arretado retrato de uma negra com flores e frutas na cabeça do dominicano contemporâneo Gilberto Hernández Ortega.
O discurso afirmativo é justo e inevitável, mas o espectador avesso ao engajamento ainda terá muito que ver. Do magnífico Cézanne (pertencente ao Masp) que exibe um escravo com as costas marcadas por chicotadas a objetos e representações de rituais do candomblé baiano e do vodu haitiano, pode-se apreciar a exposição simplesmente pelo deleite visual. O mesmo vale para o surrealismo tropical das telas de Carybé, modernista argentino que se radicou na Bahia, ou a pintura afro de Cuba e da Jamaica. As pérolas negras aguardam para ser descobertas.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589