Não faz muito tempo, intervencionista era a palavra preferida de cientistas políticos e economistas para sintetizar o agônico governo de Dilma Rousseff, que intervinha no câmbio, nos preços dos combustíveis, nos juros e tudo o mais que ousasse oscilar na direção contrária à vontade presidencial. A greve dos caminhoneiros emprestou novo sentido ao termo. Durante os nove dias que durou a paralisação, ele foi usado para identificar grupos que — presencialmente, nas estradas, ou virtualmente, pelas redes sociais — defenderam a “intervenção militar” no governo, eufemismo para “golpe”, dado que não se trata de coisa prevista na Constituição. Os intervencionistas já haviam feito algum alarido em 2015, durante as manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, quando surgiram os primeiros grupos de WhatsApp destinados a demonizar políticos e enaltecer generais. Desta vez, porém, a estridência do discurso foi amplificada pela diluição de lideranças entre os caminhoneiros e pelo fato de nenhum movimento organizado ter apadrinhado a paralisação. A categoria não é filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT) nem recebeu apoio de outras agremiações como o Movimento Brasil Livre (MBL) ou Vem pra Rua. Dessa forma, os intervencionistas encontraram uma avenida livre para trafegar — e aproveitaram.
…e pintam na Régis Bittencourt um “pedido de ajuda” às Forças Armadas, que condenaram publicamente a ideia do golpeNas estradas, espalharam faixas, cartazes e farta doutrinação. Nas redes sociais, inundaram os grupos de WhatsApp com uma profusão de postagens falsas, incluindo as que atribuíam a generais do Exército mensagens de que os militares estavam perto de tomar o poder. “Avisem a todos que quem não colocar a faixa de apoio à intervenção poderá ser preso pela Polícia Rodoviária Federal”, dizia uma delas.
Hoje, somados, os maiores grupos de intervencionistas no Facebook chegam a reunir mais de 600 000 integrantes — uma insignificância quantitativa quando se pensa que a cantora Anitta tem 13 milhões de seguidores. Mas a popularidade das redes sociais entre os caminhoneiros — que organizaram a greve basicamente por WhatsApp — e o senso de oportunidade dos grupos intervencionistas anabolizaram a repercussão da grita pela “volta do regime militar”. Segundo o Monitor do Debate Político no Meio Digital, coordenado pelo professor da Universidade de São Paulo Pablo Ortellado, das dez postagens sobre o tema “intervenção” mais populares no Facebook em 29 de maio, oito eram favoráveis aos militares. Juntas, tiveram mais de 1,8 milhão de visualizações e 112 mil compartilhamentos.
No ápice da greve, a maior rodovia pavimentada de São Paulo, a BR-116, que liga a Região Sul à Nordeste, chegou a ter mais de 100 pontos de bloqueio. No trecho que conecta São Paulo a Curitiba, o da Regis Bittencourt, eram cinco. Algumas concentrações se estendiam por mais de 3 quilômetros e chegavam a reunir mais de 1 000 caminhões enfileirados no acostamento. Já acostumados a ficar longos dias longe de casa, os caminhoneiros esticavam redes e varais de uma carreta a outra, montavam mesas para jogar carteado e dominó e colocavam cadeiras de praia na beira da estrada. Era nesse ambiente que recebiam a visita dos grupos intervencionistas, munidos de agrados como panelas cheias de arroz de carreteiro e carnes para churrasco.
O empresário Carlos Carvalho Júnior, por exemplo, que mora em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, administra dois grupos no Facebook pró-militares — Grupo Intervenção Militar – 2014, com 49 000 membros, e Acorda Brasil, com 28 000. Ele disse ter juntado turmas de até trinta pessoas para levar alimentos e faixas até os bloqueios. “Tudo pago do nosso bolso.” Ao chegarem ao local, distribuíam os presentes e partiam para as tentativas de cooptação. “Aos que não sabiam o que era intervenção, a gente explicava e eles acabavam concordando. A ideia é fazer uma nova ordem, estabelecer um tribunal militar, que é mais eficiente, e afastar os políticos corruptos”, diz. Em um bloqueio na cidade de Paranaguá (PR), o doutrinador era o caminhoneiro Nilsson Carlos Aimi, 52 anos, intervencionista de longa data. Churrasqueiro do acampamento, espeto na mão, dizia crer na intervenção como a única forma de “pôr todos os corruptos na cadeia”, armar a população e acabar com o governo que ele considera “comunista”. O termo comunista costuma ser usado por intervencionistas para descrever todo aquele que discorda da ideia do golpe. Fazem parte desse conjunto desde o líder do MBL Kim Kataguiri até o comandante-geral do Exército, o general Eduardo Villas Bôas.
No início da semana, diante da velocidade de disseminação das informações falsas aspergidas pelos intervencionistas, o comando do Exército despachou seus generais para declarar em uníssono que a instituição condenava a ideia. Até mesmo o incendiário general Hamilton Mourão, hoje na reserva, criticou as investidas golpistas. “O país não tem de ser tutelado pelas Forças Armadas”, disse ao site de VEJA. A marcha da insensatez avançou a ponto de trazer à razão inclusive o presidenciável Jair Bolsonaro. “Se tiverem de voltar (os militares), que voltem pelo voto”, disse o capitão da reserva.
A concertação de desmentidos, no entanto, nem sempre chegou aos seus principais destinatários, os caminhoneiros. No último dia da greve, em um acampamento próximo ao Porto de Paranaguá, um deles fez cara de espanto quando foi avisado por um policial rodoviário federal de que a paralisação havia terminado e que os áudios que ele acabara de escutar pelo celular — entre eles uma falsa mensagem do general Villas Bôas que advertia que o governo Temer seria destituído — não passavam de fake news.
O caminhoneiro, como a grande maioria de seus colegas de profissão, passou todo o período da paralisação informando-se unicamente através de sites não profissionais e grupos de WhatsApp. Em Jacupiranga (SP), o pastor Flavio de Oliveira Cândido, de uma igreja batista que fornecia alimentação diária aos caminhoneiros estacionados na região, disse ter mantido a TV desligada durante todo o tempo em que recebeu os grevistas por medo de eles “se revoltarem com as notícias desfavoráveis” ao movimento. Os motoristas, portanto, só se atualizavam por meio de mensagens de apoio.
Nem a restrição de informações, porém, impediu que, no fim da greve, os próprios intervencionistas admitissem o insucesso na tentativa de obter apoio à sua causa. Frustrado, Carvalho Júnior, o administrador de grupos pró-militares de Porto Alegre, reconheceu: “Há muito desinteresse da parte dos militares”.
Ao contrário do que ocorreu em abril, às vésperas do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do habeas-corpus em favor do ex-presidente Lula, desta vez nenhum segmento do Exército se deixou inflamar pelas demandas golpistas. Naquela ocasião, a possibilidade de o voto da ministra Rosa Weber resultar na não prisão do ex-presidente acirrou a tal ponto os ânimos entre alguns generais da reserva e jovens oficiais apoiadores de Bolsonaro que o comandante Villas Bôas decidiu agir para serenar os ânimos. Com o conhecimento do governo, ele postou um tuíte em que dizia que “o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição” e estava “atento às suas missões institucionais”. O texto teve ampla repercussão e também provocou reações indignadas. O decano no STF, ministro Celso de Mello, chegou a dizer que “insurgências de natureza pretoriana descaracterizam a legitimidade do poder civil instituído e fragilizam as instituições democráticas”. Na ocasião, um general do alto-comando do Exército disse a VEJA sob condição de anonimato que a não publicação do tuíte pelo comandante provocaria consequências “bem piores”. A postagem teria sido a única maneira de, nas palavras do general, aplacar os ânimos da “horda de hunos” que ameaçava se movimentar naquele momento. Desta vez, porém, a ressonância dos gritos golpistas nas fileiras do Exército foi zero — o que deve contribuir para que a palavra intervencionista, também em sua nova acepção, volte em breve ao merecido esquecimento.
Com reportagem de Victória Serafim
Publicado em VEJA de 6 de junho de 2018, edição nº 2585