Como CEO da IBM, a cientista da computação americana Ginni Rometty, de 60 anos, tem a árdua tarefa de fazer a tradicionalíssima empresa sobreviver ao que julga ser o maior período de renovação da marca. Funcionária da companhia há 36 anos, ela presenciou, na última década, a transformação da IBM de líder na fabricação de PCs em locomotiva do desenvolvimento de inteligência artificial (IA). Ao assumir em 2012 o cargo máximo, Ginni foi considerada pela imprensa americana a melhor esperança para garantir que a empresa dure mais um século no ramo. Agora, porém, com o faturamento da IBM em queda e seu salário aumentado para 33 milhões de dólares anuais, tem enfrentado duras críticas. Na entrevista a seguir, feita no hotel no qual se hospedou em uma rápida passagem por São Paulo, Ginni defende a ideia de que os seres humanos não devem temer as máquinas, explica os motivos de ter sido conselheira do presidente Donald Trump (e por que deixou de ser) e ainda mostra aversão a ser chamada de “feminista”.
Nos anos 80 e 90, a IBM se consagrou como uma marca presente na casa das pessoas por meio de seus computadores. Só que em 2005 a empresa vendeu sua divisão de PCs à chinesa Lenovo e, para o consumidor final, parece ter sumido. O que ocorreu? É engraçado como a forma de se lembrar da IBM depende da idade de cada um. Fomos fundados em 1911. Somos a única empresa de tecnologia a durar mais de um século no ramo. Completamos agora, em 2017, 100 anos de presença no Brasil, o primeiro país estrangeiro onde abrimos filial internacional. Hoje, somos a companhia de tecnologia com maior presença no exterior, atuante em 170 nações. Um dos segredos para perdurar é que a IBM ficou diferente a cada era. Nunca a empresa se definiu pela existência de somente um produto. Se tivesse feito isso, teria se tornado irrelevante. Sim, continuamos com as nossas duas características principais: sermos uma empresa de inovação e aplicarmos novas tecnologias para transformar o modo como a sociedade realiza negócios. Dentro desse mote, a IBM se reinventou. No começo, fabricava cortadores de carne e queijo. Depois, passou aos relógios, à tabulação, aos sistemas de transações e à era dos PCs. Agora, entra em seu maior período de reinvenção, girando em torno do valor da coleta e organização de dados em grandes quantidades. Podemos não ser mais tão evidentes para o consumidor, mas estamos em quase todos os processos computacionais com os quais as pessoas deparam. Não se realiza uma transação bancária, nem se pilota um avião, sem ter de confiar numa de nossas tecnologias.
Quais são os outros segredos da IBM que fizeram com que ela sobrevivesse numa indústria caracterizada por mudanças rápidas, na qual, há uma década, a Microsoft era a marca mais forte e, hoje, passou a ser dominada por novatas como o Google? A lição é: não proteja o próprio passado. Deixamos o que eram nossos principais produtos, os PCs, para focarmos o futuro, para o qual desenvolvemos ferramentas de IA. Há a sensação de que esta era é marcada por avanços mais rápidos porque existem várias transições tecnológicas ocorrendo. Empresas como o Google e o Facebook se apoiaram no que chamo de efeito das redes. É a era atual. Mas a IBM tem a visão de que está se preparando para o próximo passo. O valor que se possui em dados digitais será o grande diferencial na competição entre as pessoas, empresas e governos. Há muita informação circulando, mas existe pouco conhecimento de como chegar a ela. Por isso, apenas 20% dos dados do planeta são rastreáveis. Há 80% ainda não aproveitados.
Onde estão esses 80%? Trata-se, por exemplo, de todo o histórico de investimentos de risco dos bancos. Ou dos registros de compras das companhias de varejo. Ou de todos os históricos médicos de todos os seres humanos. Sistemas tradicionais não conseguem organizar esse mundaréu de dados. Então precisamos desenvolver IAs que possam realizar isso. Numa comparação, transformam-se os dados em um tipo de recurso natural. E quem ganha em cima de recursos naturais? Quem os detém? Lucra quem consegue extrair algo deles. Com isso, entramos no que considero ser a era da cognição, na qual as máquinas poderão aprender sozinhas, com base no conhecimento que humanos experts oferecem a elas, como lidar com esses dados. As IAs fornecerão bases para que profissionais possam tomar melhores decisões. Temos um estudo que revelou que um terço das escolhas humanas é acertado, enquanto outro terço engloba as medianas, e o outro acaba em erros brutais. A inteligência cognitiva, nome que prefiro ao de inteligência artificial, poderá aumentar nosso índice de acerto, criando um mercado que a IBM estima valer 2 trilhões de dólares.
Já há exemplos práticos do impacto dessa tecnologia? Destacarei um de fácil compreensão. Como funciona se alguém tem câncer e consulta um oncologista com acesso ao nosso software mais popular, o Watson? O profissional perguntará ao programa, frente às informações que possui, quais são os resultados prováveis. Nisso, o Watson acessará, automaticamente, 20 milhões de páginas de pesquisas sobre câncer, qualquer artigo científico publicado sobre o assunto, registros médicos e o histórico daquele paciente específico. Após essa análise, o sistema apresentará uma resposta com diagnósticos possíveis, testes recomendáveis e ideias de tratamento. A consequência é que o médico terá em mãos as melhores ferramentas, e o paciente, respostas objetivas. Recentemente, encomendamos uma pesquisa ao Massachusetts Institute of Technology, o MIT, sobre qual seria o impacto da IA nos empregos. Em termos de substituição, apenas 10% dos postos de trabalho estão diretamente sob risco. No entanto, 100% das carreiras vão se transformar, de alguma forma.
Quando a senhora assumiu o cargo de CEO, foi louvada pela imprensa como a melhor esperança para pôr ordem na casa. Hoje, cinco anos depois, a imprensa contrapõe o faturamento em constante queda da IBM com o tamanho de seu salário. A senhora dá bola às críticas? Não. É preciso administrar empresas pensando a longo prazo, não a curto. Foi isso que garantiu a força da IBM no último século e ainda fará com que a empresa dure outro século. Para tanto, escolhemos, por exemplo, vender partes bilionárias de nosso negócio, enquanto também comprávamos empresas de vanguarda. O resultado é que, agora, 45% de nossos produtos, ao todo um negócio de 80 bilhões de dólares, são novíssimos. Reinventamo-nos para o futuro.
Figuras de renome, como o empreendedor sul-africano Elon Musk e o físico inglês Stephen Hawking, defendem a tese de que as tecnologias de IA, como as desenvolvidas pela IBM, estão pavimentando um futuro perigoso, no qual as máquinas poderão dominar a humanidade. Eles estão completamente errados. Por isso, na IBM, optamos por usar o termo inteligência cognitiva, não inteligência artificial. O termo “artificial” gera temores infundados. Lidero quem produz essas inovações e tenho certeza de que estamos a décadas de distância daquele momento apontado pelos críticos em que será possível replicar tudo o que o homem é capaz de fazer — se é que a tecnologia um dia atingirá esse patamar. Mesmo se chegar lá, sei que a inteligência cognitiva sempre trabalhará em conjunto com o ser humano, ajudando-nos a nos superar. Alimentar essa ideia, de um apocalipse protagonizado pelas máquinas, representa um desserviço à civilização. Isso porque não podemos conter as enormes vantagens que essas tecnologias proporcionam e proporcionarão. Por exemplo, há 700 oncologistas na Índia, para uma população de 1,4 bilhão de indivíduos. Apenas com esses médicos, nunca será possível fornecer a todo esse povo um serviço de qualidade. Nem mesmo em países ricos o atendimento é ideal. Nos Estados Unidos, 15% dos pacientes com câncer têm acesso ao atendimento de centros especializados. Os outros 85% se contentam com médicos generalistas. Com tecnologias como o Watson, temos a oportunidade inédita de levar um suporte de altíssimo nível a todos os seres humanos que precisam disso. Tenho certeza de que a mesma tecnologia transformará o sistema educacional, a fabricação de remédios, entre tantas outras áreas.
A senhora foi criticada por integrar o conselho administrativo do presidente Donald Trump, conhecido por declarações preconceituosas, e, depois, também atacada por ter deixado o cargo. Outro ensinamento que a IBM, assim como eu, aprendeu com o tempo: é preciso envolver-se para promover mudanças. CEOs da empresa aconselharam todos os governos federais desde Lyndon Johnson (presidente entre 1963-1969). Recentemente, passei uma semana na União Europeia e lá conversei com líderes como o francês Emmanuel Macron. Só o envolvimento torna possível impulsionar o progresso. Por exemplo, é preciso trabalhar com governos para reformular sistemas educacionais com o intuito de preparar gerações para lidar com as novas tecnologias. Sem isso, indivíduos podem chegar ao mercado sem o mínimo de qualificação. Mas deixei o conselho de Trump após as declarações do presidente no episódio de Charlottesville (em agosto, supremacistas brancos tomaram as ruas da cidade do Estado de Virgínia e houve enfrentamentos violentos), que não condizem com os valores da empresa. Vislumbrei, então, a possibilidade de a IBM colaborar com o país de forma mais produtiva.
Por que a senhora não se sente confortável ao ser apontada como referência de sucesso para mulheres? Não concordo com rótulos, como o de feminista. Incomodava-me quando me inseriam em listas como a das “maiores executivas do mundo”. Respondia: “Não frise que sou uma mulher. Considere-me como profissional, e ponto”. Entretanto, tive um momento de elucidação após uma palestra na Austrália. Um executivo veio até mim e acreditei que ele fosse apenas me elogiar. Mas ele me disse assim: “Queria que minha filha estivesse aqui para se espelhar na senhora”. Notei, assim, a importância de existirem modelos de referência para as minorias. Só que, mais do que batalhar por um rótulo, é preciso agir para que todos, homens ou mulheres, possam se sentir confortáveis com quem são, em qualquer lugar. Assim, inclusive, produzirão mais. Na IBM, usamos IA para analisar candidatos, externos ou internos, justamente para que avaliadores não levem em conta os próprios preconceitos na hora da escolha.
Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557