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O pai da maconha medicinal

José Crippa, finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Saúde, está à frente dos principais trabalhos sobre o uso terapêutico do canabidiol

Por Thaís Botelho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 nov 2018, 20h39 - Publicado em 14 set 2018, 07h00

O psiquiatra paranaense José Alexandre Crippa, com apenas 47 anos, chefia uma das maiores referências de estudo em sua área, o Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto. Respeitado internacionalmente, publicou trabalhos científicos sobre doenças mentais e conduziu inúmeras pesquisas clínicas. Ainda assim, Crippa nem sempre agrada a seus colegas. O motivo é o assunto principal de seus estudos, o canabidiol, uma das 480 substâncias derivadas da Cannabis sativa, a maconha. É sua grande paixão. O acadêmico está entre os poucos profissionais no mundo que comprovaram a eficácia do composto no tratamento da epilepsia, doença que atinge cerca de 600 000 brasileiros.

Encontrado sobretudo no caule e nas flores, o canabidiol compõe cerca de 1% da planta da maconha. Ele não é psicoativo nem tóxico. Não altera o raciocínio, não produz lapsos de memória nem perda cognitiva, tampouco causa dependência, como faz o THC, outro composto da planta. Ainda assim, é bastante comum, até para médicos, a confusão entre as ações das duas substâncias. O canabidiol é eficaz no controle de surtos epilépticos — as convulsões. Ele interfere na metabolização e na recaptação da anandamida, substância associada à regulação de diversos neurotransmissores, e age quando há um desequilíbrio na produção natural de anandamida — o que pode ocorrer nos processos de epilepsia.

Crippa usou métodos inéditos e sofisticados para comprovar os benefícios do canabidiol. Foi além de resultados teóricos ou testes apenas com animais. Conseguiu mapear a ação do composto com equipamentos que flagram a atividade cerebral sob efeito da substância, como a ressonância magnética funcional. Seus achados o levaram a conquistar um pós-doutorado na King’s College, em Londres. Na Inglaterra, Crippa atingiu outro feito: convenceu os principais laboratórios farmacêuticos a fornecer vastas quantidades de canabidiol a um número grande de pacientes de seus testes clínicos e, enfim, detalhou os resultados da substância no cérebro humano: o canabidiol age nas áreas onde há maior concentração de receptores dos chamados canabinoides, que são o hipocampo (região ligada à memória), a amígdala (ligada à ansiedade e ao stress), o córtex cerebral (da cognição) e o cerebelo (da coordenação motora). Ao retornar ao país, Crippa passou a estudar os mecanismos do canabidiol e seu potencial em tratamentos de fobia social, transtorno psiquiátrico que acomete aproximadamente 13% dos brasileiros. Em parceria com o Instituto de Pesquisas sobre Abuso de Drogas de Baltimore, nos Estados Unidos, ele descobriu o efeito ansiolítico da substância. O canabidiol reduziu o medo de falar em público, comum entre portadores do problema. “Não resta a menor dúvida: o uso clínico de canabidiol abriu uma era na farmacologia”, diz Crippa.

“Não resta a menor dúvida: o uso clínico do canabidiol abriu uma nova era na farmacologia”

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Por muitos anos, os portadores brasileiros de epilepsia recorriam à Justiça ou eram obrigados a importar clandestinamente o produto dos Estados Unidos, onde ele é liberado para uso medicinal em 21 estados. Lá, sob a forma de pasta, cristais, spray ou gotas, o canabidiol é vendido em farmácias de manipulação ou diretamente pelos fabricantes. Em 2014, uma luz surgiu sobre o cenário brasileiro. O Conselho Federal de Medicina (CFM) autorizou os médicos a receitar canabidiol a crianças e adolescentes portadores de epilepsia refratária, ou seja, que não responde a tratamentos convencionais. A autorização do CFM vale apenas para que neurologistas, neurocirurgiões e psiquiatras prescrevam o canabidiol a menores de 18 anos. Os médicos têm de fazer um cadastro no CFM e os responsáveis pelo paciente precisam assinar um termo de consentimento. Em 2015, a Anvisa, órgão que regula medicamentos no país, permitiu que empresas registrassem no Brasil produtos que têm o canabidiol como princípio ativo, passo fundamental para a venda de remédios. Em abril deste ano, a agência agilizou a importação da substância, possibilitando que as autorizações para trazer o canabidiol sejam feitas por e-mail — e não apenas via Correios. A dificuldade de conseguir o composto, no entanto, continua enorme. Chegou a inspirar a produção, em 2014, do belíssimo e comovente longa-­metragem nacional Ilegal — A Vida Não Espera, do cineasta Raphael Erichsen e do jornalista Tarso Araújo. O filme traz a história de Anny, uma menina então com 5 anos, portadora de epilepsia refratária, e a batalha de sua mãe, Katiele, para conseguir o canabidiol. Anny sofria oitenta convulsões semanais, e conseguiu reduzir os sintomas com o composto.

Hoje, o país tem uma rede de centros de estudos sobre canabidiol. Entre as diversas pesquisas com a substância, uma vem sendo realizada pela USP de Ribeirão Preto, onde Crippa trabalha: a universidade conduz agora o desenvolvimento de versões sintéticas do composto, em parceria com empresas de origem brasileira, inglesa e israelense. Há também trabalhos com o produto para casos de esquizofrenia, com resultados surpreendentes. A doença psiquiátrica se caracteriza como uma das mais refratárias a tratamentos. O canabidiol aplacou sintomas, como os delírios, as alucinações e os problemas de coordenação. Além disso, a substância não provocou as reações adversas típicas dos antipsicóticos, como tremores no corpo e sonolência. O próximo passo do pesquisador será iniciar os estudos com canabidiol para o tratamento de epilepsia em crianças e adolescentes, bem como de diversas outras doenças, a exemplo de Parkinson, depressão e Alzheimer. Ele não para nunca.

Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600

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