Kim Kataguiri, o líder do Movimento Brasil Livre (MBL), anunciou que o grupo vai apoiar o empresário Flávio Rocha para concorrer à Presidência da República. Ótimo para o MBL e ótimo para Rocha. Mas é bom que se diga logo: não se trata aqui de um movimento político aderindo a um candidato. Primeiro porque o dono da Riachuelo ainda não é candidato e nem partido tem. Depois porque o MBL, em que pese a tentativa de dedaço de Kataguiri, não é propriamente um movimento político — está bem mais para uma azeitada máquina de marketing do que para uma legenda partidária.
O grupo surgiu em maio de 2014, quando dois jovens filiados ao PSDB decidiram criar um movimento para renovar a política de sua cidade — Vinhedo, no interior de São Paulo. O lançamento, na praça central, foi um fracasso retumbante. Não reuniu mais que uns poucos gatos pingados. Mas um dos jovens, Renan Santos, então com 30 anos, resolveu ir adiante. Montou uma página no Facebook e começou a abastecê-la com alvo certeiro: críticas ao PT. Com a ajuda de amigos publicitários e youtubers — entre eles Kataguiri —, passou a produzir em escala industrial memes com potencial de viralização. Seis meses depois, estava na Avenida Paulista, no coração de São Paulo, liderando manifestações em favor do impeachment de Dilma Rousseff. Hoje o grupo reúne mais de 2,6 milhões de seguidores nas redes.
Renan Santos é ainda o principal estrategista do MBL (e sua figura mais controversa, entre outros motivos por responder a algumas dezenas de processos judiciais, a maioria deles ações trabalhistas de empresas de sua família — “Sou apenas mais um empresário sufocado pela burocracia”, diz a quem o questiona sobre o assunto). Kataguiri — 22 anos, 675 000 seguidores no Facebook e agora pré-candidato a deputado federal pelo DEM — virou a face mais visível do movimento. Mas a alma do grupo nem sabe que o MBL existe: chama-se Ryan Holiday, é americano e autor do livro Acredite, Estou Mentindo — Confissões de um Manipulador das Mídias. Foi dele que outra liderança do MBL, o vereador pelo DEM Fernando Holiday (na verdade, Fernando Silva Bispo), tirou o sobrenome, digamos assim, artístico, apesar de dizer oficialmente que é uma homenagem à cantora Billie Holiday. Ryan, o escritor, é o guru do MBL, e sua obra, a cartilha do movimento. Nela, o americano relata como construiu uma fortuna plantando notícias e manipulando informações em prol de suas causas — não necessariamente nobres.
O maior dos feitos de Ryan Holiday foi popularizar o filme I Hope They Serve Beer in Hell (Espero que Sirvam Cerveja no Inferno), de seu amigo Tucker Max. O longa pregava ideias misóginas e tinha tudo para passar despercebido. Para evitar que o filme fosse silenciosamente ignorado, Holiday primeiro espalhou cartazes pela cidade de Los Angeles. Em seguida, vandalizou-os com fita adesiva. Aí, fotografou as imagens do falso “vandalismo” e as enviou para jornalistas. Nas semanas seguintes, a notícia da depredação dos cartazes estava nas páginas impressas e virtuais dos principais jornais americanos. Todos caíram na balela feito patos. A repercussão chamou a atenção de feministas, que saíram às ruas, desta vez de verdade, para protestar contra o longa. Em poucas semanas, o filme, de orçamento baixíssimo, era debatido e visto nos Estados Unidos.
O MBL mostrou ter feito a lição de casa. Em novembro de 2016, mais de 800 escolas da rede pública do Paraná estavam ocupadas por movimentos de esquerda contrários às mudanças no ensino médio propostas pelo governo Temer. Contra o protesto da esquerda, o MBL enviou representantes para o estado, entre eles Renan Santos e Felipe Lintz, com o objetivo de “invadir as invasões” (tudo devidamente transmitido ao vivo pelo Facebook, é claro). Quando as ocupações perderam a força, um outdoor em homenagem ao MBL apareceu nas ruas de Curitiba. “Obrigado MBL, por colocar nossos filhos de volta na escola!”, dizia o banner. Era uma auto-homenagem. A VEJA, Lintz contou que o cartaz fora encomendado pelo próprio MBL. E não foi só. Dias depois de o outdoor ser instalado, surpresa: nele, foi pregada uma faixa com os dizeres “MBL fascista”. Ganha um exemplar de Confissões de um Manipulador das Mídias quem adivinhar o autor da intervenção. Sim, o próprio MBL. Segundo Lintz, por orientação de Renan Santos, ele próprio estragou o outdoor para sugerir um ataque da esquerda. Perguntado, Renan Santos negou que tenha pedido a Lintz, hoje fora do MBL, que forjasse ataques.
A incursão do grupo nas escolas foi uma das estratégias usadas pelo MBL para recuperar sua popularidade nas redes depois da queda de Dilma Rousseff e do esfriamento das manifestações. Outras, adotadas com o mesmo fim, foram comprar briga com alguém mais popular que eles (como a que ocorreu com Caetano Veloso, por exemplo) e disseminar fake news, como aconteceu recentemente no caso do assassinato da vereadora Marielle Franco. Dias após a morte de Marielle, o grupo compartilhou no Facebook um texto que tratava como verdadeiras as falsas informações postadas pela desembargadora Marilia Castro Neves — de que Marielle teria sido eleita pelo Comando Vermelho e financiado sua campanha com dinheiro do tráfico. Tudo mentira. A postagem teve mais de 30 000 compartilhamentos só no Facebook. Quando os boatos foram desmentidos, o MBL se limitou a deletar a postagem e jamais se retratou.
Também a transparência nas finanças está longe de ser o forte do grupo. Fica a cargo de Alexandre Santos, de 29 anos, irmão de Renan, a administração do dinheiro — mas como a grana entra e para onde a grana vai são perguntas às quais ninguém gosta de responder. O MBL fornece “ajuda de custo” mensal no valor de cerca de 1 000 reais a um número desconhecido de membros. Só em São Paulo, custeia pelo menos sete funcionários e arca com um aluguel de aproximadamente 10 000 reais. Tem ainda despesas com equipamentos de filmagem e edição e com o impulsionamento de posts nas redes, um gasto fixo que não fica por menos de 40 000 reais mensais. Para fazerem frente aos custos — cuja soma o grupo também não revela —, os fundadores dizem contar apenas com doações. Quantas doações? O MBL não informa. Por três meses, VEJA solicitou esses números ao grupo, que nunca cumpriu a promessa de fornecê-los.
O dinheiro das doações entra por meio do CNPJ do Movimento Renovação Liberal e da NCE, responsável por produzir os vídeos do grupo. Mas ex-doadores afirmam que há outros caminhos. Uma empresária que ajudou a custear a marcha do MBL a Brasília no período do impeachment de Dilma afirma que deixou o grupo, entre outros motivos, porque se incomodou com o fato de ter de fazer depósitos de doação na conta de Alexandre Santos. “Vi que tinha algo obscuro, que o discurso se descolava de algumas atitudes. Havia uma falta de consistência e muito marketing”, afirmou ela, que pediu anonimato por temer ser atacada pelo MBL na internet.
Para políticos com ambições de colher votos nas redes, o MBL é um parceiro cobiçado. Mas, como uma noiva interesseira, é volúvel e nem sempre fiel. Já trabalhou para o prefeito João Doria quando o tucano tinha pretensões — e chances — de concorrer à Presidência da República. Abandonou-o quando Doria se mostrou inviável e passou a flertar com Jair Bolsonaro, mas o encantamento durou pouco. Agora, o movimento encontrou Flávio Rocha, que precisa de apoio e visibilidade para conseguir uma legenda que lhe dê guarida — e conta com a máquina de propaganda do MBL para chegar lá. O grupo está empenhadíssimo na missão: só neste ano foram 91 posts exaltando o empreendedor. Flávio Rocha jura que nunca deu um real sequer ao movimento pela propaganda. “Estou até pensando em fazer um jantar para levantar recursos para eles, para ajudá-los”, diz. Se o empresário de fato recolher uns trocados, será a primeira fonte de receita conhecida do MBL.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575