No dia 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero fixou na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, na Alemanha, o documento 95 Teses. No texto, feito em tópicos, ele expôs suas reflexões sobre as práticas do cristianismo, enfrentou o papado e questionou as relações vigentes entre os dois grandes poderes da época: o Estado e a Igreja Católica. O teólogo, que se tornaria o principal nome da Reforma Protestante, criticava sobretudo a compra de indulgências — ou seja, o pagamento pelo perdão dos pecados — como caminho para a salvação. Suas palavras deram início a uma revolução que, cinco séculos depois, não só se reflete em nossa sociedade como se mostra mais atual do que nunca.
A reforma foi desencadeada por outro movimento, o Renascimento, que retomou o estudo dos clássicos e suas referências. Na filosofia, os antigos gregos voltaram à moda. Na religião, o estudo da Bíblia foi aprofundado. O acesso a um exemplar das Escrituras era difícil. Além de onerosas, as cópias disponíveis estavam em latim — logo, só eram lidas por pessoas de alto poder aquisitivo, que podiam aprender a língua. Foi nesse período, em 1516, que o holandês Erasmo de Roterdã organizou a primeira edição do Novo Testamento em grego, a língua dos manuscritos originais, enquanto boa parte do Antigo Testamento foi redigida em hebraico.
Para além da esfera acadêmica e religiosa, o mundo atravessava uma grande transformação. A ascensão da burguesia fazia crescer o povoamento à sua volta — os burgos, os primeiros focos urbanos — e punha em crise a organização feudal. Comércio e bancos se destacavam como novos atores e passavam a dividir e disputar o poder com a nobreza e o clero, com crescente influência junto aos monarcas graças ao patrocínio de guerras e exércitos. É nesse cenário que Lutero desponta e sua reforma ganha um terreno fértil para brotar.
Em 1521, ao ser excomungado por suas teses e, consequentemente, perder a proteção da lei, Lutero foi sequestrado por amigos que temiam por sua vida. Levado a um retiro forçado, ele se dedicou àquela que se tornou a sua principal obra: a tradução da Bíblia para o alemão. Lutero acreditava que a quebra do poder absoluto dos líderes religiosos passava pelo acesso direto à Bíblia, que deveria ser lida e estudada por todos. Assim, o povo poderia entender que a salvação vem de Deus e de seu filho, Jesus, mediante a fé, e não da transferência de recursos financeiros.
Com o fim das indulgências, cria-se o invisível cimento que ajudará a unir movimentos sociais. A maioria dos países abandonaria o governo monárquico para adotar o modelo eleitoral, com voto amplo da sociedade. Até nas monarquias ainda existentes, as parlamentaristas, o voto popular está presente. Uma forma de confirmar que somos todos iguais.
A partir do momento em que Lutero defende o perdão para todos, já que são todos iguais perante Deus, um novo princípio democrático surge e começa-se a separar Estado e Igreja. O princípio continua necessário e revolucionário. Afinal, dentro e fora de igrejas, ainda hoje muitos valorizam mais o ter e a capacidade de produzir do que o ser, a essência.
A justificação — ou salvação — pela fé proposta por Lutero abre caminho para novas reflexões. Se o ser humano poderia ter acesso direto a Deus, qual seria o papel da Igreja e do Estado? O Estado deveria assumir funções que, até então, eram do domínio da Igreja? Qual o papel do Estado na educação? Qual o valor do trabalho e a sua remuneração?
Os reformadores que se seguem, com destaque para João Calvino e John Wesley, expandiram o movimento. Calvino levou a reforma à Suíça francesa, onde aprofundou o vínculo com o ascetismo, a disciplina e o trabalho, enquanto Wesley se aprofundou em questões sociais, olhando para o povo, camada negligenciada pelos cristãos da época.
Um outro aspecto resultante da reforma, que merece ser revisitado, é a questão da educação. Na Idade Média, a educação do povo estava aos cuidados da Igreja, já que os governos só educavam os nobres. Vários escritos de Lutero se dirigiam às autoridades seculares, incentivando a criação de escolas para todos. Lutero considerava o Estado responsável pela educação das pessoas, embora não isentasse os pais da tarefa, que começa no lar.
No âmbito cultural, a tradução da Bíblia por Lutero ensejou a atuação de outros tradutores, como João Ferreira de Almeida, o pioneiro na versão para a língua portuguesa. Antes da de Lutero, outras traduções já existiam, mas com circulação proibida. As autoridades civis e religiosas tinham controle sobre os poucos sistemas de impressão disponíveis. Lutero entrou para a história também por ter sido a Bíblia o primeiro livro reproduzido por Johannes Gutenberg, o inventor da imprensa, facilitando o acesso ao texto.
Hoje, a Bíblia completa está traduzida para 648 idiomas, e partes do texto sagrado podem ser encontradas em mais de 3 000 línguas. O fato de um livro tão relevante ser vertido para a língua do povo, como fez Lutero, valoriza a sua cultura. Na América Latina, e em várias outras partes do mundo, quando o livro sagrado é traduzido para um idioma minoritário, este encontra força para sobreviver. É o caso de algumas línguas indígenas brasileiras, que ganharam versões das Escrituras.
Atualmente, o acesso à Bíblia é muito mais fácil. E esse é, sem dúvida, um legado eterno da Reforma Protestante para a humanidade.
*Erní Walter Seibert, secretário de Comunicação, Ação Social e Arrecadação da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB)
Publicado em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição nº 2555