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O Fitzcarraldo do litoral

Samuel Mac Dowell, finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura, construiu um teatro em Ilhabela, em São Paulo, para fins musicais e pedagógicos

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 10 dez 2020, 10h30 - Publicado em 20 jul 2018, 06h00

Em Fitzcarraldo, produção do cineasta Werner Herzog, de 1982, o ator Klaus Kinski interpreta um explorador irlandês do início do século XX que se muda para Iquitos, no Peru, a fim de aproveitar o ciclo da borracha. Fã do tenor italiano Enrico Caruso, ele sonha em construir uma casa de ópera na cidade para poder desfrutar os dós de peito de seu grande ídolo. O advogado pernambucano Samuel Mac Do­well de Figueiredo, de 68 anos, finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura, passa longe dos sonhos megalomaníacos do irlandês, mas, em nome da arte, ele até se permite cometer excentricidades. Mac Do­well é fundador e mecenas do Centro Cultural Baía dos Vermelhos, um instituto de 150 000 metros quadrados em Ilhabela, no Litoral Norte de São Paulo. Constituído por dois teatros, o maior deles com capacidade para 1 100 pessoas, o Vermelhos apresenta desde 2013 espetáculos que vão de recitais do violoncelista Antonio Meneses a performances da cantora alemã Ute Lemper e coreografias da São Paulo Companhia de Dança.

O Fitzcarraldo brasileiro pretende ir além. O próximo passo é abrir, em parceria com a prefeitura de Ilhabela e a Secretaria da Cultura do estado, uma escola de formação musical. “Eles podem ser criados aqui dentro. Primeiro, sopro e percussão; depois, cordas e, por fim, corais”, diz Mac ­Dowell. A ideia é que a música tenha uma função não apenas pedagógica, mas também profissionalizante.

Tal como o aventureiro vivido por Kinski, Mac Dowell teve sua sanidade questionada. Quando o advogado ousou comentar seu sonho com as pessoas do condomínio em que morava, elas deram um apelido jocoso ao projeto. “Elas o chamavam de Woodstock. E eu sabia que deram esse nome a título de gozação”, comenta, referindo-se à lendária cidade americana que sediou o célebre festival de música de 1969. O poder público também não lhe foi simpático. Mac Dowell viu passar pela cidade três prefeitos que não ligaram para o projeto. Ele comprou um terreno no sul da ilha, incrustado num espaço entre o mar e as encostas do Parque Estadual de Ilhabela, e deu início à construção do teatro. Embora tenha sido autorizado a captar recursos via Lei Rouanet, preferiu bancar o projeto do próprio bolso. “Eu teria dois sócios indesejados: o patrocinador e o Estado.” Mac Dowell estima que gastou 3 milhões de reais na obra.

A disposição das cadeiras foi inspirada na Phillarmonie, sede da tradicionalíssima Filarmônica de Berlim, e a estrutura não fere o meio ambiente. “Não tiramos uma pedra do lugar nem entramos com máquinas no terreno”, diz Mac Dowell. O centro foi aberto ao público em junho de 2013, com a apresentação de um grupo de câmara regido pelo maestro Júlio Medaglia. Dois anos depois, foi construído um anfiteatro para 220 pessoas. Ali ocorrem espetáculos de música de câmara e solistas.

Samuel Mac Dowell é filho de intelectuais pernambucanos com poucas inclinações musicais. Sua mãe, por exemplo, odeia recitais de piano. A salvação foi uma tia que possuía uma coleção de discos de compositores barrocos. Mac Dowell fez da advocacia seu ganha-pão. Durante a ditadura, destacou-se em casos como os assassinatos do jornalista Vladimir Herzog, do operário Manoel Fiel Filho e do político e guerrilheiro Carlos Marighella. Mas sempre esteve ligado ao mundo das artes. Gianfrancesco Guarnieri, ator e diretor de teatro, foi um de seus clientes. Elis Regina também recorreu aos serviços de Mac Dowell. Eles tiveram uma relação amorosa, interrompida pela precoce morte da cantora, em 1982.

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Mac Dowell não poupa esforços para garantir a qualidade da programação do Vermelhos. Quando convidou Nelson Freire para tocar no seu teatro, enviou um e-mail para o pianista. Freire agradeceu o convite, mas disse que morria de medo de mosquitos e só se apresentava em pianos da marca Steinway. “Respondi que tinha repelente de insetos e pedi informações sobre onde poderia providenciar o piano”, diz o advogado. O pianista mineiro chegou a Ilhabela no fim de 2016. Gostou tanto da experiência que voltou no ano seguinte, para um concerto de Beethoven.

Mac Dowell é um purista. “Um dia assisti a uma apresentação da Concertgebouw, de Amsterdã, no Parque Ibirapuera. Ficaram tocando picadinhos de obras famosas, parecia uma quermesse.” Mahler, cujas sinfonias são longas e intensas, caberia por inteiro na programação do Vermelhos? “Creio que sim. Mas, se tivesse de abrir para uma versão mais popular, eu colocaria trechos de obras que dessem uma dimensão de sua grandeza.” Além de se destacar pelo cuidado com a programação, o Vermelhos prima pelo preço dos ingressos — geralmente entre 10 e 30 reais, abaixo do valor de mercado, para que toda a população da ilha possa ir. Isso quando a entrada não é gratuita. O poder público ajuda na infraestrutura (transporte, por exemplo). Muitas vezes, Mac Dowell tem de “passar o chapéu” junto aos amigos para pôr em prática uma temporada atraente até para quem está acostumado a récitas nas grandes capitais.

O mesmo esmero com o qual cuida da programação se estende aos seus projetos sociomusicais. Ele trabalha em conjunto com Almir Clemente, maestro da Orquestra Popular de Ilhabela, na construção de um repertório para um grupo de sopro e percussão que hoje é formado por trinta pessoas e ensaia no Vermelhos. Em 4 de agosto, inicia-se a nova temporada do Vermelhos 2018 — Música e Artes Cênicas, que homenageará o compositor americano Leonard Bernstein. Uma das atrações da programação será uma versão de West Side Story, a maior criação de Bernstein. Samuel Mac Dowell é um Fitzcarraldo com final feliz.

Publicado em VEJA de 25 de julho de 2018, edição nº 2592

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