O barão dos musicais
Com sucessos como 'O Fantasma da Ópera' e 'Sunset Boulevard', o inglês Andrew Lloyd Webber criou uma fórmula cafona, mas valiosa: o espetáculo “fast-food”
Mimi era a macaca de estimação da pianista e violinista Jean Hermione Johnstone. A símia vivia em harmonia com Jean e o marido, o também musicista William Lloyd Webber, num apartamento no bairro londrino de South Kensington. Mas, quando Jean ficou grávida, a macaca surtou: passou a guinchar furiosamente em direção à proeminente barriga de sua dona. “Foi a primeira pessoa a demonstrar descontentamento com Andrew Lloyd Webber”, brinca, falando de si em terceira pessoa, o hoje celebrado compositor — que vinha a ser o bebê que Jean carregava no útero.
Webber, de 70 anos, é um artista capaz de provocar reações extremadas. Os fãs adoram seus musicais suntuosos, influenciados pela ópera e com melodias tão familiares. Já os detratores se horrorizam, na mesma medida, com o brilho coruscante de suas criações, tidas como arremedos cafonas da música erudita e do rock progressivo. “Lloyd Webber dominou o mundo. A aids também”, desdenhou certa vez Malcolm Williamson (1931-2003), compositor oficial da corte de Elizabeth II, com o humor negro típico dos súditos da rainha.
Não adianta espernear: Andrew Lloyd Webber é uma grife indisputável, venerada inclusive pela própria realeza inglesa, que lhe concedeu o título de barão. Desde Jesus Cristo Superstar, lançado em 1971, ele acumula um currículo de vinte grandes (e lucrativos) musicais. O Fantasma da Ópera é o bem mais precioso no baú do compositor. Baseado na novela de mesmo nome do francês Gaston Leroux (1868-1927), o espetáculo coleciona números impressionantes desde sua estreia, em Londres, em 1986. Foi visto por 140 milhões de pessoas em 35 países e traduzido para quinze línguas. É o segundo musical mais longevo no West End londrino e aquele que está há mais tempo em cartaz na Broadway, em Nova York. Por mais de três décadas o público acorre aos teatros para ver a história do gênio deformado que vive nos subterrâneos da Ópera de Paris e decide transformar a corista Christine Daaé na estrela da companhia. A trama é movimentada por pirotecnias como lustres que caem sobre a plateia, labaredas de fogo à beira do palco e bengalas que soltam projéteis flamejantes.
A exportação de O Fantasma da Ópera para muito além do circuito clássico do gênero ilustra a inovação disseminada por Lloyd Webber: ele inventou o que se pode chamar de musical “fast-food”. Seu espetáculo mais conhecido é uma franquia que se mantém inalterada — e com igual sucesso — a despeito de fatores conjunturais como o país ou o elenco. O Brasil está entre os lugares que consumiram avidamente as produções de Lloyd Webber. Passaram por aqui Cats, Evita e Jesus Cristo Superstar. E a indústria dos musicais já se agita com o anúncio das audições para Sunset Boulevard, em setembro. A estreia será só em 2019, mas há especulações sem fim sobre quem faria o papel feminino principal — Claudia Raia e Marisa Orth são as mais cotadas. A primeira versão de O Fantasma da Ópera foi encenada em 2005, e não deu outra: tornou-se o maior sucesso da história recente dos musicais no país. Ficou quase dois anos em cartaz e atraiu 880 000 pessoas. Pois o personagem voltará a assombrar a nação em breve: a partir de 2 de agosto, uma nova montagem estreará em São Paulo.
A produção traz dois intérpretes do mundo da ópera: o tenor Thiago Arancam e o barítono Leonardo Neiva vão se revezar na pele do monstro de bom coração. “Eu vejo muito de Puccini ali”, diz Arancam, estreante nesse tipo de produção, referindo-se ao compositor de La Bohème. Há muito de ópera ali, de fato. Os espetáculos de Webber recriam as tramas rocambolescas de Verdi e Puccini: seus cenários e figurinos são marcados pela opulência meio rococó associada ao gênero. “Você não vai a um espetáculo dele esperando só um pretinho básico”, resume o diretor Charles Moeller.
Webber faz bom uso do leitmotiv, técnica de composição difundida pelo alemão Richard Wagner que consiste na repetição de um tema específico toda vez que um personagem entra em cena. O fantasma é anunciado por uma melodia cavernosa de teclado. A música guarda similaridade com Echoes, do grupo inglês Pink Floyd. Roger Waters, um de seus integrantes, gracejou sobre a coincidência e foi ameaçado de processo por Lloyd Webber. O roqueiro se vingou na canção It’s a Miracle, na qual sonha que a tampa de um piano cai sobre as mãos de seu desafeto, esmagando-as.
No mundo de Webber, as propaladas “divas” têm função essencial. O Fantasma da Ópera foi feito para a cantora Sarah Brightman, com quem ele foi casado de 1984 a 1990. O homem, contudo, sabe ser sádico: impõe desafios excruciantes às intérpretes. “Quem criou essa música não gosta de mulher”, disparou Patti LuPone, deusa da Broadway, ao deparar com a partitura de Evita (que nos anos 1980 lhe rendeu um Tony, o Oscar do teatro). A reclamação vem temperada com certa ironia sobre as preferências sexuais de Webber. Embora esteja no terceiro casamento e tenha cinco filhos, o compositor é conhecido nos bastidores como The Queen (A Rainha) por sua altivez e modos delicados. A mágoa de Patti tem motivo. Nos anos 1990, ela protagonizou a versão inglesa de Sunset Boulevard. Mas, quando o espetáculo foi para os Estados Unidos, o compositor a trocou por uma estrela de Hollywood, Glenn Close. Patti e a Rainha estão rompidos desde então.
O Fantasma da Ópera representa o apogeu do musical arrasa-quarteirão. A obra se caracteriza pela produção luxuriante. “É brilhante porque tem efeitos especiais bem escolhidos e há sempre uma surpresa a cada final de cena”, disse a VEJA Harold Prince, diretor da montagem original. A opção pelo excesso não é unanimidade. Frank Rich, crítico do jornal The New York Times, definiu o espetáculo — cujo cenário contém uma gôndola vetusta e candelabros dourados — como a “versão de Liberace no inferno”. Liberace, diga-se, foi aquele pianista que transformou o mau gosto e o exagero em entretenimento.
A fórmula pode ser kitsch, mas funciona que é uma beleza. “Lloyd Webber é mestre na arte de contar histórias”, diz o americano Arthur Masella, diretor que vem ao Brasil para cuidar de cada detalhe do espetáculo. O Fantasma montado no país é rigorosamente igual ao de qualquer outra encenação no mundo. A franquia demanda um trabalho extra de atores e profissionais da produção. Claudio Botelho, adaptador das letras para o português, lembra-se de que, da primeira vez em que o espetáculo veio para cá, gastou suor tentando convencer os emissários de Lloyd Webber a autorizar a troca da sílaba tônica do tema principal. Eles insistiam que se cantasse o refrão de acordo com a entonação original em inglês, com ênfase na sílaba inicial da palavra “fantasma”. O letrista argumentou que fazia mais sentido mudar a tônica para a segunda sílaba, como se fala em português. Botelho venceu.
Não é à toa que Lloyd Webber fica de olho em suas crias. Seus musicais trouxeram uma fortuna pessoal de 1,2 bilhão de dólares, apenas abaixo do 1,28 bilhão que fazem do ex-beatle Paul McCartney o mais rico do showbiz mundial. Nem a conta bancária o livra, porém, do fantasma da velha macaca Mimi. Aos 10 anos, ele e a mãe reencontraram o bicho num zoológico inglês. Quando ela viu o menino, passou a gritar furiosamente. “Não tem jeito, Andrew: Mimi não gosta de você”, disse sua mãe. Eis um compositor que apanha, mas não perdeu a pose de barão.
Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591