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No palco da coragem

Katiana Pena, finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura, fundou um instituto de dança filantrópico em um bairro violento de Fortaleza

Por Sérgio Martins Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 30 nov 2018, 20h38 - Publicado em 13 jul 2018, 06h00

Em novembro do ano passado, na periferia de Fortaleza, o rapper Rashid deu uma palestra sobre sua trajetória artística. No momento em que falava sobre a violência que ceifa os talentos da periferia, ouviu-se um barulho de tiros. Rashid se assustou, mas logo escutou do público presente: “Fica tranquilo que é normal”. A vio­­lência faz parte do lugar onde Rashid fez sua palestra, o Instituto Katiana Pena, que existe desde 2015 e está sediado em Bom Jardim, um dos bairros mais conflagrados da capital cearense. Ali, 550 alunos aprendem a dançar e recebem reforço escolar. “E eles ganham lanche”, diz a coreógrafa Katiana Pena, de 35 anos, fundadora do instituto e finalista do Prêmio VEJA-se na categoria Cultura.

A ênfase na comida, a princípio, pode soar como anedota. Mas não é. Alimentar-se faz parte da luta diária dos moradores da comunidade e da trajetória de vida de Katiana, que trabalha desde os 6 anos para ajudar a família. Certa vez, ao se afastar dos limites de Bom Jardim (bairro onde nasceu e vive até hoje), ela encontrou uma enorme tenda no caminho. Era um circo-­escola. Convidada pelos proprietários para tomar aulas de contorcionismo e equilibrismo, a futura dançarina se encantou com um detalhe importante. “Tinha comida”, conta Katiana, que passou seis anos no circo até entrar na Escola de Desenvolvimento e Integração Social para Criança e Adolescente (Edisca), uma ONG de Fortaleza que ensina dança e teatro a jovens carentes. Katiana teve de pedir dinheiro à mãe, dona Maria Afonso da Pena Morais, pois precisava de um vestido para fazer o teste para a Edisca. “Ela disse que arrumaria um para mim. Mas eu tomaria uma surra se não conseguisse a vaga”, diverte-se Katiana. Deu certo. Ela fazia faxina para pagar a condução até a escola, e conseguiu se formar.

“Todas as mazelas sociais estão aqui”, diz a coreógrafa sobre o bairro onde vive e dá aulas de dança

Por meio da dança, Katiana conheceu países da Europa e do Oriente Médio. Tempos depois, foi trabalhar no Centro Cultural Bom Jardim, mantido pelo governo do estado, onde transformou o curso de dança em um dos mais concorridos. Com a bagagem adquirida por essas três experiências — o circo-escola, a Edisca e o Centro Cultural —, Katiana fundou seu instituto, cujo objetivo é aprofundar o trabalho em prol dos 38 000 habitantes de Bom Jardim. “Todas as mazelas sociais estão aqui”, diz a coreógrafa.

O bairro vive em estado de guerra. Atualmente, ele é disputado por duas facções criminosas, os Guardiões do Estado (GDE) e o Comando Vermelho. Existe uma linha divisória imaginária entre um território e o outro — e quem ousa cruzá-la normalmente paga com a vida. “Semanas atrás, tiraram um menino da sala de aula de uma escola aqui perto e o executaram com dez tiros”, diz Katiana. A própria reportagem de VEJA testemunhou a cena de um crime no dia em que visitou o instituto: havia um corpo ensanguentado não muito longe dali.

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Um dos objetivos de Katiana é levantar a autoestima dos moradores do bairro, que já foi chamado de Território da Paz. As fotos de divulgação da entidade e de seus bailarinos são produzidas na vizinhança, onde os alunos fazem suas coreografias em meio à lama e aos espaços vazios. É uma maneira de mostrar que a arte sobrevive mesmo com a falta de condições. O bairro, por seu turno, responde ao carinho de sua moradora mais famosa. As casas que ladeiam o instituto são decoradas com pinturas na parede que contam a história de Katiana — numa delas, ela é retratada, ainda criança, fazendo um passo de balé.

O Instituto Katiana Pena é, literalmente, a casa da dançarina. Ela mora ali com o marido, Francisco, e os filhos, Iarley Cauã e Maria Antônia, de 13 e 9 anos. A ideia inicial era alugar um galpão para os ensaios. Mas Katiana foi dissuadida pela mãe. “Ela disse que eu precisava realizar o meu sonho”, diz a coreógrafa, que dorme nos fundos da casa. A garagem foi transformada em recepção, e os alunos têm aulas no andar de cima do sobrado. Parte das obras foi bancada pelo FGTS da dançarina. Em agosto do ano passado, ela recebeu uma pequena ajuda do apresentador Luciano Huck para reformar a casa-escola. Resultado: o número de alunos dobrou. A manutenção do local é feita com uma boa dose de sacrifício. Os dezesseis professores lecionam de graça. Os alimentos são obtidos na base da permuta. Katiana dá aulas de zumba a clientes e empregados de um supermercado em troca de sucos. Outro comércio da região cede bananas e ganha divulgação nas redes sociais do instituto.

As aulas são um amálgama das cul­turas erudita e popular. Os alunos aprendem passos de balé clássico, mas normalmente ele é ensinado ao ritmo de funk, rap e moderna música negra americana (em especial aquela que vem acompanhada pelos rebolados de Rihanna e Beyoncé). Essa popularização, contudo, não deve ser confundida com banalização. Existe uma proposta séria nas coreografias de Katiana, e ela se mantém atenta ao empenho de seus alunos. O espetáculo mais recente da companhia se chama A Rua É Noiz e utiliza a canção Yasuke, do rapper paulistano Emicida, para criticar a intolerância religiosa. No fim de abril, a bailarina Valeriya Shikina e o bailarino Ilya Vladimirov, ambos do Bolshoi, tradicional grupo de dança russo, uniram-se aos alunos de Katiana para a coreografia dessa encenação, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza.

O rapper Rashid, citado no começo deste texto, não acha nada normal ouvir tiros da sala de aula. “Por outro lado, as pessoas ali presentes poderiam estar engrossando as estatísticas de violência em vez de estar assistindo a uma palestra”, diz. O Instituto Katiana Pena é palco da luta corajosa da arte contra a barbárie.

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Na próxima edição, conheça a história de mais uma finalista do Prêmio VEJA-se, na categoria Diversidade. O prêmio dá reconhecimento a cidadãos que se destacam como agentes de mudança na sociedade brasileira

Publicado em VEJA de 18 de julho de 2018, edição nº 2591

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