Assine VEJA por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Não ao retrocesso

A queda dos índices de vacinação no Brasil é um sério risco à saúde pública. A campanha deve ajudar, mas a solução depende de ação do governo e da sociedade

Por Isabella Ballalai*
Atualizado em 10 ago 2018, 07h00 - Publicado em 10 ago 2018, 07h00
  • Seguir materia Seguindo materia
  • A vacinação é considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) o segundo maior avanço da história da humanidade no campo da saúde pública, atrás apenas da ampliação da oferta de água potável. As vacinas estão prestes a livrar o mundo da pólio e a encerrar a epidemia de meningite A, que assolou a África por décadas. Anualmente, elas são capazes de evitar entre 2 milhões e 3 milhões de mortes por difteria, tétano, coqueluche e sarampo.

    Publicidade

    Criado no Brasil em 1973 e hoje reconhecido como referência internacional, o Programa Nacional de Imunizações do Ministério da Saúde consolidou e ampliou uma série de políticas que se iniciaram no longínquo ano de 1832, quando foi estabelecida a primeira legislação de vacinação obrigatória no país. De lá para cá, o Brasil conseguiu erradicar a varíola (1971), a poliomielite (1989) e, depois, eliminou a circulação endêmica da rubéola e da rubéola congênita (2015), do sarampo (2016) e do tétano materno e neonatal (2017). Trata-se de avanços inequívocos, a ser celebrados como um marco. Domar essas doenças é um enfático indicador de desenvolvimento do país.

    Publicidade

    A situação, porém, emite neste momento preocupantes sinais de retrocesso. As baixas coberturas vacinais em crianças menores de 1 ano ao longo de 2017, as piores dos últimos dezesseis anos, e os mais de 1 000 casos de sarampo no Amazonas, em Roraima e em outros estados acenderam um alerta vermelho para a possibilidade real do retorno dessas doenças ao nosso cotidiano (à exceção da varíola, cujo vírus selvagem não circula mais no planeta).

    Vislumbrar o que poderá acontecer caso os números de vacinação permaneçam insatisfatórios não é difícil se fizermos uma rápida visita ao passado. Em 1991, de acordo com dados do Ministério da Saúde, foram registrados no Brasil 42 532 casos de sarampo e 690 mortes decorrentes da doença. Em 1992, foi dada a largada no Plano Nacional de Eliminação do Sarampo e seus efeitos positivos já se fizeram sentir: os registros caíram de forma significativa — para 7 700 ocorrências e 29 mortes, respectivamente.

    Publicidade

    A caminhada que culminou com o certificado de área livre do sarampo, concedido às Américas pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em 2016, não foi livre de percalços. Devido à alta transmissibilidade da doença, à facilidade de deslocamento da população e à circulação do vírus em regiões de forte apelo turístico — a Europa, por exemplo, enfrenta uma epidemia há mais de um ano, com mais de 20 000 casos notificados —, lidamos com alguns surtos de grandes proporções. Em 1997, a chegada de duas pessoas infectadas da Itália e uma do Japão, combinada ao resultado de adesão aquém do esperado à campanha do ano anterior, causou uma epidemia que afetou mais de 5 000 pessoas e matou sessenta no Brasil — quase dez vezes o número de mortes registradas em 1996. A última vez em que o sarampo havia tomado a forma de um surto no país foi entre 2013 e 2015, mas de maneira localizada, no Ceará.

    Continua após a publicidade

    A volta ao passado traz consequências nefastas. É bom conhecê-las para dimensionar o problema e alertar para a premência de preveni-lo. Além dos óbitos que provocam, o sarampo e, principalmente, a poliomielite podem levar a sequelas que comprometem o desenvolvimento na infância e a saúde e o bem-estar por toda a vida adulta. No caso do sarampo, há o risco de cegueira e quadros neurológicos crônicos, como paralisia cerebral e convulsões. Já no da poliomielite, podem ocorrer dificuldades de fala, deformação nos membros e dependência de ventilação mecânica para respirar. São incalculáveis os prejuízos psicológicos, sociais e econômicos.

    Publicidade

    No século XXI, com tanto conhecimento científico acumulado e tamanho acesso às vacinas, cabe mergulhar nas razões que explicam um retrocesso como este que estamos vivendo. Como em toda questão dessa complexidade, a resposta não é fácil nem única. Certamente a sensação de segurança gerada pelo desaparecimento das doenças — que é, aliás, global — faz com que uma significativa parcela da população imagine que a prevenção não é mais prioritária. Às vezes, o medo volta, é verdade, mas em casos isolados. Como esquecer as brigas travadas em unidades básicas de saúde pelo imunizante contra a febre amarela no auge dos últimos surtos? No geral, porém, as vacinas ficaram em segundo plano.

    A isso, soma-se a onda de notícias falsas, que ajudam a sepultar ganhos acumulados em décadas. Apesar da excelência do trabalho para garantir a eficácia dos imunizantes — desde os testes laboratoriais até o monitoramento de eventos adversos após a vacina começar a ser aplicada em massa —, as redes sociais e os aplicativos de mensagens foram tomados por todo tipo de absurdo. O mais célebre, sem dúvida, é a existência de uma suposta relação entre a tríplice viral (vacina que ataca o sarampo, a caxumba e a rubéola) e o autismo, já desmentida por inúmeras pesquisas científicas. Combater o discurso do medo é hoje primordial. Em 2015, a Sociedade Brasileira de Imunizações lançou a iniciativa Vacina É Proteção para Todos, da qual se originou o portal Família SBIm (familia.sbim.org.br). A página, uma espécie de enciclopédia on-line, foi a primeira em língua portuguesa a ser incluída pela OMS na Vaccine Safety Net, lista de sites com informações confiáveis sobre vacinação.

    Publicidade

    Outro ponto que emperra o avanço da imunização é a falta de conhecimento de que a vacinação não termina na infância. Adolescentes, adultos e idosos têm calendários a cumprir e algumas vacinas, como a dupla ou tríplice bacteriana e a da gripe, precisam ser tomadas regularmente para que seja mantida a proteção. Apesar de sua importância, a campanha de vacinação contra a gripe precisou ser estendida seguidas vezes neste ano para que 90% do grupo prioritário fosse alcançado. Além disso, a maior incidência de febre amarela se observou justamente em pessoas acima dos 20 anos. Cerca de 75% dos infectados no surto de hepatite A que ocorre em São Paulo desde 2017 têm entre 18 e 39 anos.

    Continua após a publicidade

    Que esses números sirvam de alerta a todos. Ajustes são absolutamente necessários para que o país não volte no tempo. Do ponto de vista de quem trabalha com políticas públicas, entre representantes de entidades médicas e da sociedade civil organizada, é preciso atuar com cada vez mais empenho para elaborar estratégias de comunicação adaptadas aos novos tempos. É preciso também que haja maior clareza em uma mensagem elementar: o êxito da vacinação não está apenas nas campanhas contra doenças específicas, como a da pólio, que eternizou o Zé Gotinha no imaginário popular. Seu sucesso sustentável só será obtido por meio da vacinação de rotina e das campanhas de multivacinação. Nesse sentido, a campanha nacional que se iniciou agora, para a aplicação de vacinas contra sarampo e poliomielite em todas as crianças de 1 a 5 anos, tenham ou não sido imunizadas antes, pode ser de muita ajuda.

    Publicidade

    Dada a grandeza do tema, vale o investimento em estabelecer turnos de atendimento alternativos para abarcar a demanda de quem não pode ir às unidades básicas de saúde em horário comercial, ter um programa consistente de vacinação escolar e aumentar a prescrição de vacinas por parte de médicos não pediatras. A responsabilidade é de todos. O Brasil não pode olhar no retrovisor.

    * Isabella Ballalai é pediatra e presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações

    Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595

    Publicidade

    Publicidade

    Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

    Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

    Domine o fato. Confie na fonte.

    10 grandes marcas em uma única assinatura digital

    MELHOR
    OFERTA

    Digital Completo
    Digital Completo

    Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 2,00/semana*

    ou
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital

    Receba Veja impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

    a partir de R$ 39,90/mês

    *Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
    *Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.