Na véspera da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, o clima no Palácio do Jaburu atingiu nível crítico, mas nada tinha a ver com a histórica sessão do Congresso. Em São Paulo, um hacker invadira o celular de Marcela Temer, mulher do então vice-presidente Michel Temer. O criminoso ameaçava divulgar o que havia encontrado no aparelho — material, segundo ele, capaz de provocar o primeiro “grande escândalo” no governo que tomaria posse em pouco mais de 24 horas. O hacker exigia 300 000 reais para guardar segredo e deu um ultimato: “A hora é agora. Amanhã não vai ser possível voltar atrás”. O escândalo prometido, como se sabe, não aconteceu. Silvonei José de Jesus, o criminoso chantagista, foi preso, condenado e encaminhado para um presídio. O caso foi resolvido, mas nunca se soube ao certo o que havia de tão comprometedor no telefone da primeira-dama.
VEJA teve acesso a um depoimento ainda inédito do hacker em que ele conta detalhes do caso, explica o motivo real da chantagem e afirma que a divulgação de fotos íntimas da primeira-dama — assunto que foi altamente especulado na época do crime — não era a parte principal de sua tentativa de achaque. Havia um conjunto de imagens privadas guardado na memória do celular, além de áudios com algumas inconfidências da primeira-dama sobre assessores do presidente, mas a questão central era dinheiro. “Na verdade, não foi bem as fotos (sic)”, diz o hacker no trecho do depoimento a que VEJA teve acesso. “Foi mais um áudio que tinha dela conversando com o irmão dela (…) Que ela tinha que fazer um pagamento. Como eu falei, eles falavam de muitos valores. Ela não queria expor o imposto de renda dela (…) Então, não foi em cima das fotos que cobrei o valor. Foi em cima desse áudio. Para não expor um áudio”, complementa.
“Na verdade, não foi bem as fotos (sic). Foi mais um áudio que tinha dela conversando com o irmão dela alguma coisa para não… Que ela tinha que fazer um pagamento. Como eu falei, eles falavam de muitos valores. Ela não queria expor o imposto de renda dela.”
Silvonei José de Jesus, em depoimento à Justiça
Como não era o conteúdo da conversa que estava sob análise da Justiça, e sim a tentativa de extorsão do criminoso, a juíza do caso não se interessou em fazer perguntas sobre os tais pagamentos e, assim, fica-se sem saber detalhes do que seriam os “muitos valores” ou as razões pelas quais a primeira-dama não queria expor seu imposto de renda.
Silvonei José de Jesus ganhou liberdade condicional há quatro meses, dois anos depois de invadir o celular de Marcela. Ele trabalha atualmente como telhadista e conseguiu autorização judicial para fazer um curso de sistemas de informação numa universidade privada. Procurado por VEJA, disse que não daria entrevista. “Fui condenado e paguei pelo que fiz. Estou pagando ainda, porque estou em condicional”, disse. O chantagista se julga injustiçado não só por ter praticado um crime considerado “menor” e ter sido alvo de um dos processos mais céleres da história da Justiça brasileira — da investigação à sentença transcorreram apenas seis meses, um recorde absoluto —, mas também por ter sido enviado a um presídio que já abrigou criminosos famosos como o ex-médico Roger Abdelmassih, condenado pelo estupro e abuso de 39 mulheres.
A invasão do celular da primeira-dama teve um tratamento prioritário desde o início da investigação do caso, quando a chefe de gabinete de Temer enviou um ofício ao então secretário de Segurança de São Paulo, Alexandre de Moraes, convidado depois pelo presidente para assumir o Ministério da Justiça e, posteriormente, ocupar o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. O crime passou a ser investigado pela divisão antissequestro da Polícia Civil de São Paulo. As informações eram tão restritas e sigilosas que apenas dois policiais tiveram acesso ao conteúdo do aparelho da primeira-dama, que armazenava mais de 300 fotos. As imagens foram excluídas da parte pública do processo e, por ordem judicial, acabaram depois lacradas para eliminar o risco de vazamento. Os personagens envolvidos receberam codinomes na investigação, para que sua identidade ficasse preservada. Marcela Temer era “Mike”. O presidente da República, “Tango”. Em depoimento prestado na época, a primeira-dama disse que “como qualquer outra dona de casa e esposa mantém arquivos fotográficos íntimos e privados”. Indagada especificamente sobre a chantagem, afirmou que sua vida pessoal é “pacata e reservada, sendo que raríssimas vezes acompanha seu esposo em eventos sociais e políticos, dedicando-se exclusivamente ao seu filho e sua família”.
Silvonei José de Jesus foi condenado a cinco anos e dez meses de prisão. Casos semelhantes ao dele dificilmente têm o mesmo desfecho. Em 2010, Douglas dos Santos Lopes invadiu a caixa de e-mails da então candidata a presidente Dilma Rousseff e do ex-ministro José Dirceu. Copiou mais de 600 mensagens eletrônicas dos dois petistas — material, segundo ele, com potencial para abalar as estruturas do governo que então se iniciaria. O rapaz tentou, sem sucesso, vender as mensagens. Denunciado, disse à Polícia Federal que destruiu o aparelho em que havia armazenado o material. Sem maiores delongas, o caso foi encerrado, sem processo, sem prisão. Hoje, Santos Lopes administra uma empresa que presta serviços de prevenção a ataques de hackers.
Com reportagem de Hugo Marques
Publicado em VEJA de 29 de agosto de 2018, edição nº 2597